sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

 

FEMINISMO NO BRASIL DO SÉC. XIX: o jornal “Sexo Feminino”

Alexandre L. Gonzaga (UFMS)

 

A imprensa no Brasil teve início em 1808 com a transferência da família real e da corte portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro. Diversos periódicos desde então foram publicados no país e destaca-se um relevante número de publicações destinadas ao público feminino, e entre estas publicações aparecem, publicações de caráter feminista. O Jornal das Senhoras, publicado no Rio de Janeiro em 1852, o periódico “O Bello Sexo” aparece em 1862 e “O sexo Feminino” em 1873. Este último periódico começou a circular em 7 de setembro de 1873, editado inicialmente em Campanha, estado de Minas Gerais, e depois em 1875 no Rio de Janeiro, cada edição com quatro páginas somente texto, sem ilustrações, por D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz com auxílio de algumas colaboradoras. De acordo com Woitowicz (2008) O jornal “O Sexo Feminino” foi provavelmente o primeiro periódico cujo principal objetivo era o de divulgar e discutir causas femininas como os direitos no casamento e mulheres que eram tratadas em regime de semiescravidão pelos maridos. As mulheres eram quase completamente submissas e reprimidas no século XIX, na relação conjugal, o casamento, a família e a maternidade eram imposições às mulheres, e á sua responsabilidade ficava o serviço doméstico e a criação dos filhos ficando para o marido a responsabilidade de suster as necessidades da casa. Nesta clara desigualdade dos papéis as mulheres tinham reduzidas a participação social, a autonomia e a individualidade. Também no ambiente escolar não era muito comum a presença de mulheres. Morel e Barros (2006, p. 60) nos dizem que foi apenas na segunda metade do século XIX que se pôde observar um número razoável de mulheres alfabetizadas, que se interessavam por poesia e romances de folhetim. O jornal “O Sexo Feminino” trazia romances de folhetim provavelmente como um possível atrativo, mas seu foco era essencialmente a educação e a emancipação da mulher, assumindo assim um caráter expositivo da condição social feminina. O jornal ia além da observação imparcial da dinâmica política e social, mas a materialidade discursiva, não só do conteúdo do jornal, mas pela própria existência deste pode ser visto per se como gesto de contestação. A própria data escolhida para circulação da primeira edição já tinham em si uma evidência de contestação, a independência do política do país e a independência social da mulher. O primeiro parágrafo do jornal já mostra a que veio, com o título “A educação da mulher”, diz que apesar das zombarias, indiferenças, da perseguição dos retrógrados e até de chufa e mofa de conterrâneas O Sexo Feminino lutará até morrer, e finaliza a coluna inicial conclamando “viva a independencia do nosso sexo! Viva a instrucção da mulher! Vivão as jovens campanhenses!”. Assim, nessa fala a editora do jornal reafirma a proposta do periódico de rejeitar qualquer oposição à defesa dos direitos femininos. A materialidade discursiva no editorial da edição inaugural causa um efeito de sentido persuasivo que conclama a uma necessidade do momento. A editora Senhorinha Diniz enuncia de um lugar virtual, o logos, de onde constrói o ethos de orador, podendo se mostrar por meio das escolhas que ela faz para passar para a leitora uma impressão de si de alguém empunhando uma bandeira, tal qual o quadro de Delacroix “A liberdade guiando o povo”. O destaque do político, do ideológico e do histórico é bastante acentuado no jornal. Orlandi (1995) nos diz que os limites do dizer pode ser contextualizado sócio-historicamente, em particular em relação ao poder-dizer. O discurso editorial de “O Sexo Feminino” envolve uma política antissilenciamento, cujo sentido remete à censura social machista à qual as mulheres estavam sujeitas, pode ser explicitada também em relação ao não dito dessa política. A força do discurso silenciado pode ser visto na tiragem do jornal. Nascimento e Oliveira nos dizem que primeira impressão da primeira edição foi de 800 exemplares, e que foram reimpressos outros 4 000 exemplares para satisfazer às reclamações de assinantes que exigiam os números anteriormente publicados. A força argumentativa da enunciação da editora do jornal ganha mais força à medida que divergir do discurso social vigente, mas que se mostra verossímil e defensável. A validação do discurso passa então pela aceitação dos valores propostos na argumentação aos destinatários da enunciação. Um desdobramento da estratégia argumentativa de Senhorinha Diniz exige do destinatário a recuperação de crenças compartilhadas, assim, para convencer o leitor, a editora lista vários nomes de senhoras que estudam em uma escola normal local, chamadas de normalistas. Nesse momento, o efeito de sentido que o enunciador causa é o da mulher que é mãe que detém o poder da mudança social, de melhorar a sociedade. Recorre-se aqui a Pêcheux, a fim de nos localizarmos melhor em nossa base teórica, o discursivo é amplo, e em função da amplitude precisa-se categorizar análise e, para isso faze-se uso de categorias comuns às ciências sociais como “quem diz o quê, para quem, onde e quando”, e também o situar em um lugar, ou seja, de onde as pessoas falam e de quais lugares. A editora Senhorinha Diniz marca seu discurso com citações filosóficas, desse modo caracteriza a alteridade através do discurso relatado, revelando sua formação discursiva e de onde ela, como sujeito enunciativo fala. A veiculação de citações também se soma à construção da imagem de si que o enunciador pretende partilhar, uma imagem de autoridade da qual não se questiona. A somatória desses elementos colaboram para compor o ethos da editora do jornal. Chama a atenção na apresentação do periódico a pressuposição da oposição, não necessariamente a oposição constitutiva, mas a posição contrária à emancipação feminina. A editora do jornal pressupõe a inscrição de um duplo destinatário, um que apoia e outro que se opõe à causa, por isso expõe a base de sua proposta, que é a instrução e a educação das mulheres de seu tempo. A editora pretende que seu jornal seja um veículo de informação da verdade, trazendo à lume a capacidade intelectual feminina e conclamando mulheres e homens a aderirem à esta causa.

 

 

 

Referênicias

 

DUARTE, Constância Lima. Feminismo no Brasil: Pequena história. (mimeo) s.d. disponível em: http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/pghis/ monografias/ educacao.pdf> acesso em 10.nov.2014

GIDDENS, A. Transformações  da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Oeiras: Celta Editora, 2001.

WOITOWICZ, K. J. Páginas que resistem: a imprensa feminista na luta pelos direitos das mulheres no Brasil. Trabalho apresentado no GT história da Mídia Alternativa, IV Congresso Nacional de História da Mídia (UFF, Niteroi, RJ), 2008. Disponível em http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/6o-encontro-2008-1/Paginas%20que% 20resistem%20A%20imprensa%20feminista.pdf> acesso em 10.nov.2014.

MOREL, M. & BARROS, M. O raiar da imprensa no horizonte do Brasil. In: Palavra, imagem e poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p.21-50.

NASCIMENTO, C.V., OLIVEIRA, B.J. O Sexo Feminino em campanha pela emancipação da mulher. In: Cadernos Pagu, n. 29. Julho-dezembro de 2007; pgs 429-457. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n29/a17n29.pdf> acesso em 10.nov.2014.

Orlandi, E. P. As formas do silêncio. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.

Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi, et al. Campinas, SP: Edit. da UNICAMP, 1995.

 

ACEITAÇÃO E PRESERVAÇÃO DAS LÍNGUAS INDÍGENAS: limites culturais

 

Alexandre Luís Gonzaga (UEMS-JARDIM)

 

 

RESUMO: A aceitação das línguas indígenas acontece de modo parcial no país. Buscou-se expor duas situações opostas sobre a aceitação e preservação da língua indígena: de um lado o evento ocorrido durante o julgamento do homicídio do índio Marcos Veron, quando a juíza que presidia o caso não permitiu o depoimento de testemunhas indígenas em língua guarani, obrigando-os a falarem em português; de outro lado a implantação de referenciais curriculares para escolas indígenas onde a alfabetização e estudo das diversas disciplinas acontece em língua indígena. O paradoxo linguístico está em descobrir se a preservação da língua indígena traz consigo a manutenção do direito de se expressar por ela ou é apenas um item de fetiche cultural.

PALAVRAS-CHAVE: Língua indígena, PCN-escolas indígenas, bilinguismo.

 

ABSTRACT: The acceptance of indigenous languages ​​happens partially in the country. We tried to expose two opposing situations on the acceptance and preservation of indigenous language: on one side the event occurred during the trial of the murder of the Indian Marcos Veron, when the judge presiding over the case did not allow the testimony of witnesses in indigenous Guarani language, forcing them to speak in Portuguese, on the other hand the implementation of curriculum frameworks for indigenous schools where literacy and study of various disciplines happens in indigenous language. The linguistic paradox lies in whether the preservation of indigenous language brings with maintaining the right to express themselves through it or is it just an item of cultural fetish

KEYWORDS: indigenous language, PCN-indigenous schools, bilinguism

 

INTRODUÇÃO

Em maio de 2010 testemunhas indígenas foram impedidas de se expressar em um tribunal em sua própria língua mediante auxílio de um intérprete. A decisão da então juíza que presidia a sessão do tribunal levou o então procurador da República a abandonar a sessão como forma de protesto e de impedir o prosseguimento dos trabalhos, o julgamento foi suspenso.

Pretende-se aqui trazer à luz alguns dos fatores intervenientes que cercam esse fato no que tange à linguística e suas políticas no país.

Para isso, efetuamos uma pesquisa bibliográfica e na rede mundial de computadores sobre as políticas linguísticas nacionais e viu-=se que elas não estão claras e nem explícitas na página da web do Ministério da Educação e Cultura – MEC.

1.               A LÍNGUA INDÍGENA NA CONTEMPORANEIDADE

 

Nas últimas duas décadas aproximadamente os povos indígenas têm conseguido se constituir como sujeitos de seu próprio destino, tendo seus direitos coletivos e individuais cada vez mais respeitados. A forma de construção de autonomia dos diversos povos indígenas no país busca tornar as instituições vigentes mais sensíveis e flexíveis à uma proposta de convivência pacífica com todos os brasileiros. O reconhecimento na Constituição Federal de 1988 de inclusão dos direitos coletivos dos povos indígenas está entre os mais importantes direitos conquistados.

Luciano nos diz que:

[...] as reivindicações indígenas por terra, por recursos naturais, por meio ambiente saudável, pelo reconhecimento de sua organização social, por estruturas políticas próprias, por sistemas econômicos sustentáveis, por seus símbolos de identidade encontram cada vez mais justificação moral e ecológica na sociedade brasileira e mundial (2006, p. 96)

A língua pode ser vista como um dos principais símbolos que representam a identidade de um povo. Para os povos indígenas o reconhecimento da cidadania indígena resultou na valorização da cultura própria, consequentemente, possibilitou o aparecimento de uma consciência étnica mais incisiva. Para Luciano (ibidem, p. 38) ser índio se transformou em sinônimo de orgulho identitário, em uma expressão sociocultural relevante. As línguas indígenas estão sendo reaprendidas e praticadas nas aldeias e escolas como forma de afirmação identitária e orgulho de ser índio.

Por outro lado, o desaparecimento de alguma língua traz prejuízos de diversas ordens nos níveis individual e coletivo, já que como dito anteriormente a língua identifica, caracteriza e qualifica um indivíduo ou uma comunidade. De acordo com Luciano (op, cit. P. 122) “o indivíduo que conhece sua língua e sua cultura também se desenvolve melhor como pessoa, como cidadão e como membro de uma coletividade, e mais facilmente conhece o seu lugar e responsabilidade na sociedade”.

O Estado tem estimulado, através da educação indígena, a manutenção da existência das línguas indígenas, para, consequentemente, preservar sua cultura. Assim, examinando o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCN-EI) vemos como o Estado se pronuncia quanto à manutenção de algumas línguas indígenas.

O RCN-EI inicia levando o leitor a ponderar sobre a importância da linguagem na existência humana. É através da linguagem que o homem expressa seus pensamentos, suas emoções e sentimentos; também através da linguagem que o homem cria suas narrativas na busca de dar sentido à sua própria existência. O referencial também diz que o português não é a única língua falada em nosso país, conclui então que o Brasil é um país multilíngue.

Ao reconhecer que o país é multilíngue e multiétnico mostra a complexidade sociolinguística vivida pela sociedade, especificamente entre os povos indígenas. Nesse sentido, não é raro encontrar indivíduos bilíngues ativos (aquele que entende e fala duas línguas) e bilíngues receptivos (entendem total ou parcialmente, mas não falam direito).

O referencial como expressão da ideologia do Estado diz que a língua do governo, das leis, da imprensa e a língua dominante, o português. As línguas indígenas são, segundo o RCN-EI “línguas dominadas ou línguas subalternas” (p. 117). Contudo, a inclusão de uma língua indígena no currículo escolar atribui-lhe condição ou status de igualdade com a língua portuguesa, prerrogativa prevista na Constituição Federal.

Ainda no âmbito dos parâmetros curriculares para as escolas indígenas, o RCN-EI diz que:

Primeiramente, a língua indígena deverá ser a língua de instrução oral do currículo para introduzir conceitos, dar esclarecimentos e explicações. [...] Em segundo lugar, a língua indígena deverá se tornar a língua de instrução escrita predominante naquelas situações que digam respeito aos conhecimentos étnicos e científicos [...]. (MEC, 1998, p. 119)

Assim, vê-se que em comunidades indígenas a língua indígena será vista como a primeira língua, o RCN-EI procura evitar o termo “língua materna” como forma de desambiguar o fato de a língua materna ser aquela falada pela mãe da criança, e que não raro há casos em que o pai fala outra língua, e é essa língua que a criança irá aprender primeiro. Desse modo, usa-se o termo “primeira língua” mesmo não sendo o mais adequado porque há comunidades e que a criança aprende simultaneamente duas ou mais línguas desde tenra idade. Contudo, o que se pretende é equipar algumas línguas indígenas para atingirem um grau de funcionalidade e consequentemente um grau de reconhecimento para seu uso. Nesse sentido os parâmetros curriculares para escolas indígenas equipam a língua indígena com uma transcrição alfabética, dão-lha uma norma e o mais para sua funcionalidade.

Essas ações do Estado visam levar o índio a ter orgulho de sua língua e do seu povo, são ações de revitalização, mesmo que incompletas e que são incentivadas devido aos benefícios políticos e à melhoria da autonomia que trazem à toda a comunidade. A língua portuguesa permitirá assim, que as populações indígenas conheçam o funcionamento da sociedade que as envolve e lhes permitirá acesso a informações e tecnologias diversas.

2.               O MITO DA LÍNGUA ÚNICA

 

No Brasil havia uma ideologia que pairava no ar de que o país tinha uma única língua, a do colonizador português. Desde os tempos coloniais essa ideia tem disfarçado uma realidade linguisticamente plural. Tanto quanto a composição étnica brasileira é multifacetada, assim é também a realidade da ou das línguas faladas no país. De um ponto de vista acadêmico, parecia haver pouco espaço para questionamentos teóricos e empíricos referente às políticas linguísticas, de acordo com Oliveira prefaciando a obra de Calvet (2007).

Os questionamentos têm se avolumado nas últimas duas décadas, assim, as reivindicações sociais referentes a questões étnicas, regionais, de fronteira, culturais, possibilitaram a ver através do que a ideologia da única língua escondia, o país é constituído por diversas comunidades linguísticas, que de uma maneira ou de outra participam da vida política nacional. Quer-se ressaltar aqui que as diversas comunidades linguísticas de que se fala incluem línguas indígenas, línguas de comunidades imigrantes, língua de sinais ou ainda por grupos quilombolas.

As relações entre língua e vida social envolvem ao mesmo tempo questões de identidade, de cultura, de economia e desenvolvimento que afetam a sociedade em vários níveis. A diglossia ou poliglossia, termo que ora empregamos para buscar melhor definir a situação linguística no país dentro de uma visão sincrônica, não teve desde o período inicial da colonização uma coexistência harmoniosa. Uma situação conflituosa entre língua dominante e uma língua dominada é comumente observável. Esse tipo de conflito resultou, no país, a uma situação onde a língua dominante se impôs de forma a levar ao desaparecimento as outras línguas dentro do território. Das cerca de mil línguas indígenas faladas no Brasil na época do descobrimento, sobraram apenas 180 línguas aproximadamente, dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Ministério da Cultura[1].

Atualmente há um trabalho de recuperação das funções e direitos das línguas faladas no país em detrimento do processo de substituição da língua dominada em favor da língua dominante. Um passo importante dentro desse processo foi o Decreto n. 7.387 de 09 de dezembro de 2010, que instituiu o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, que tem o objetivo de identificar e registrar os idiomas dos diversos grupos que compõem a sociedade brasileira. O texto do referido decreto diz que as línguas inventariadas deverão ter relevância para a memória, história e identidade dos diversos grupos da sociedade do país e também servirão para orientar políticas públicas.

Esse fato corrobora o que disse Calvet (2007, p. 75) “as políticas linguísticas são geralmente repressoras e precisam, por essa razão, da lei para se impor: não existe planejamento linguístico sem suporte jurídico”. Assim, é um decreto que se ocupa da defesa das línguas para assegurar uma promoção maior e para protegê-las tal como um ambiente ecológico.

Ações positivas como um decreto dessa envergadura dá sentido mais amplo à expressão “direito à língua” (CALVET, 2007, p. 85). Não falar a língua oficial do Estado priva o cidadão de seu direito de exercer sua cidadania de maneira plena. Nesse sentido, o reconhecimento oficial no sentido de valorizar a pluralidade linguística abre numerosas possibilidades sociais como o direito à educação, à alfabetização e atualmente o acesso a educação superior. O princípio de defesa de minorias linguística, nas palavras de Calvet (ibidem, p. 85) faz com que todo cidadão tenha direito a sua língua. Procura-se então evitar que uma comunidade linguística localizada perto das grandes metrópoles não seja diferente daquela localizada nas regiões limítrofes ou fronteiriças: uma fala a língua oficial do Estado e reivindica o direito à sua língua, quanto o outro pode estar duplamente prejudicado por não ter sua língua reconhecida e por não dominar, e às vezes seque conhecer, a língua do Estado.

Para deixar claro que não nos desviamos do caminho inicial proposto, o Estado, em seus diversos níveis de atuação, deve falar a mesma língua, ou seja, deve comungar a mesma ideologia; não se pode ver um agente do Estado ignorar as ações de valorização linguística e forçar cidadãos a se expressarem na língua oficial do Estado quando esta não é materna.

3.               AJI e COPAI-OAB

É uma situação dialética pois que de um lado o índio precisa e quer manter sua identidade e de outro, o índio quer e precisa se integrar à sociedade “branca”, usufruir dos recursos tecnológicos que em certa medida lhes proporcionarão melhor qualidade de vida. Impõem-se que é necessário saber em que medida deixar a língua materna de lado a aderir à comunicação em língua portuguesa e também o oposto, em que medida não deixar a língua portuguesa invadir o dia a dia para poder preservar a língua materna.

No estado do Mato Grosso do Sul, dois sítios da web se destacam em assuntos indígenas, são dois blogs que contribuem em nossas discussões, um chama-se Ação de Jovens Indígenas de Dourados (AJI[2]) e outro Comissão Permanente de Assuntos Indígenas (COPAI-OAB[3]).

O blog AJI, em sua página inicial traz a seguinte declaração sobre sua natureza:

A AJI – Ação dos Jovens Indígenas de Dourados – é uma Organização indígena Não-Governamental financiada com capital privado. Fundada em 2001 pela antropóloga Maria de Lourdes Beldi de Alcântara junto com jovens Guarani, Kaiowá e Terena, a AJI vem lutando por uma voz ativa na sociedade. Um dos objetivos da AJI é fortalecer a socialização entre essas três etnias que compõe a Reserva Indígena de Dourados, tida como a mais populosa do país: são aproximadamente 15 mil indígenas confinados em 3,5 mil hectares, entre as cidades de Dourados e Itaporã.a sede da AJI está localizada na cidade de Dourados, a Quatro quilômetros da Reserva Indígena

Percebeu-se que os autores do blog são bastante ativos quanto aos textos, desde 2006 são 912 textos postados. Entretanto foram observados apenas quatro textos com referência à língua indígena. Há uma intensa discussão sobre a terra, ocupação, demarcação e uso; notícias sobre eventos nacionais e internacionais relacionados com povos indígenas entre outros textos. Questões que envolvam a língua estão ligadas de modo breve a questões como alfabetização e educação nas escolas indígenas, pouco ou nada se falou sobre incentivos à perenização da língua. Um texto, no entanto, chamou a atenção, sobre duas dissertações de mestrado defendidas em língua terena e que cujas bancas foram realizadas dentro da comunidade daquela etnia, mas o texto postado no blog chamava a atenção pelo feito, dois indígenas conseguiram obter título acadêmico de mestre, mas pouco falava da defesa das dissertações terem sido realizadas em língua indígena com tradução por exibição visual auxiliada por projetor de textos em português.

Assim, acredita-se que a língua não parece ser uma questão prioritária entre os jovens indígenas de Dourados que mantém a alimentam com informações o referido blog.

O blog COPAI-OAB, traz a seguinte declaração:

A Comissão Permanente de Assuntos Indígenas da OAB, Seccional Mato Grosso do Sul é a primeira e a única Comissão de Assuntos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil em todo o país. 

É uma comissão com permanente preocupação com questões indígenas e como diz a própria descrição, é uma comissão única no país. Contudo chama-se a atenção para o fato de que não se localizou entre os vários textos do sítio, um que fosse relacionado diretamente com o assunto “língua indígena”.

Não se quer aqui, baseado em apenas duas páginas na web, se dizer que o assunto “línguas indígenas” seja relegado para um segundo plano, mas que a vontade de preservar a língua não como um conjunto dos fatos de linguagem, classificável entre os fatos humanos como o disse Saussure (1975, p. 23), mas como um bem cultural do qual a identidade de um povo não pode prescindir.

Quando no mês de maio de 2010 dois indígenas que iam depor como testemunhas em caso de homicídio tiveram seus direitos cerceados instaurou-se uma discussão polarizada sobre o assunto que provocou manifestações de diversas partes.

O jornal douradense Dourados Agora[4] em sua edição de 05 de maio de 2012 assim resumiu o fato:

O Ministério Público Federal (MPF) declarou-se categoricamente contra o pedido da defesa dos três acusados pela morte do cacique Marco Veron, que estão sendo julgados pelo crime desde ontem (3), em São Paulo.

A defesa pediu a impugnação do intérprete escolhido pelos índios, alegando que eles podem falar a língua portuguesa. A juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal de São Paulo, deferiu parcialmente o pedido e iria designar o intérprete apenas para os índios que não falam português. O MPF abandonou o plenário. O julgamento foi suspenso e não tem data para ser retomado. O MPF vai recorrer ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, para garantir aos índios o direito de se expressar na própria língua, o guarani.

O MPF entende que o Brasil é um país multi-étnico e que a língua portuguesa não pode ser considerada a única linguagem utilizada por seus habitantes. Ainda mais considerando-se que o guarani era falado pelos índios muito antes da chegada dos primeiros europeus. O pedido da defesa é contrário à Constituição Federal (artigos 231 e 210) e diversas convenções internacionais, como o artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para o MPF, a pergunta que deveria ser feita aos índios não é se eles entendem o português, mas em qual língua eles se expressam melhor.

O texto acima também foi publicado pela Assessoria de Comunicação Social do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul, ambos sem autoria definida.

A partir desse fato, houve algumas manifestações partidárias e institucionais como a publicada pelo Partido da Causa Operária e as manifestações da Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE e a Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR.

Assim, quando impediu o depoimento dos indígenas em língua guarani, a juíza fomentou amplo debate sobre a liberdade de idiomas no país.

A partir da sociolinguística, pode-se arguir que o jargão técnico aliado às construções frasais próprias da área jurídica torna a linguagem usada nos tribunais quase hermética, o que por si só já justifica a presença de um tradutor. Assim, mesmo com bons conhecimentos da língua portuguesa os índios tinham natural preferência para exporem suas versões do ocorrido usando de sua língua materna e assim procurando fugir de possíveis armadilhas que a língua portuguesa poderia lhes impor.

Fuhrmann (s.d.) citando o professor José Ribamar Freire nos diz que mesmo para pessoas com boa formação em português, a linguagem usada nos tribunais pode ser de difícil compreensão,

Aceitar que eles se comuniquem em sua língua materna é uma forma de fugir de um julgamento preconceituoso, pois reduz a impotência do índio perante a Justiça e lhe dá confiança. Isso é fundamental para quem está em busca da verdade real.

Deve-se considerar que poucos chegam a um nível pleno de bilinguismo que proporcione a capacidade raciocinar em um segundo idioma tão claramente quanto no idioma materno.

Desdobrando um pouco mais esse caminho, Santos (2000, p. 127) nos diz que embora a fluência seja vista como o resultado da automatização, a performance fluente não implica o uso de processos automáticos. Embora a fluência simule a rapidez, ainda sim depende de processos controlados e monitorados pelo falante, e nesse sentido, passíveis de erros e atos falhos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A força ideológica que o Estado exerce sobre o indivíduo, interpelando-o em sujeito pode colocá-lo em alguns momentos em situação conflituosa. O representante do Estado no momento da sessão em que se julgava um fato social agiu ideologicamente determinado, mas expôs uma situação linguística delicada, expressar-se oficial e juridicamente ainda não é permitido ao índio no país.

Mesmo abordando an passant alguns pontos que se julgou pertinentes à questão, viu-se por um lado ações positivas do Estado no sentido de preservar a língua indígena, mas paradoxalmente, de outro o mesmo Estado relegando a língua indígena a mero fetiche cultural.

As questões que envolvem a língua devem ser reafirmadas e repetidas continuamente, os jovens indígenas não podem querer falar a língua portuguesa em detrimento da língua materna.

Sabe-se que as pressões sociais e políticas exercem influência nefasta, levando o indígena a crer erroneamente que sua língua é uma materialização inferior de linguagem verbal e, portanto, melhor seria abandoná-la.

Espera-se aqui fomentar mais discussões para evitar que o efeito indelével do esquecimento se sobreponha à memória da língua.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Decreto n. 7.387 de 09 de dezembro de 2010. Institui o Inventário Nacional da Diversidade Linguística e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=10/12/2010&jornal= 1&pagina=1&totalArquivos=168. Acessado em 03.set.2012

CALVET, J. L. As políticas linguísticas. Prefácio de Gilvan Oliveira; trad. Isabel Duarte, Jonas Tenfen, Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial: IPOL, 2007.

FUHRMANN, L. Justiça Guarani. In Revista Língua Portuguesa. Meio eletrônico. (S.D.) Disponível em http://revistalingua.uol.com.br/textos/56/artigo248847-1.asp. Acessado em 05.set.2012.

LUCIANO, G. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

SANTOS, P. F. Processos automáticos e rápidos na segunda língua: sistemas cerebrais distintos? In: FORTKAMP, M. B. Aspectos da Linguística Aplicada: estudos em homenagem ao professor Hilário Inácio Bohn. Florianópolis: Insular, 2000.

SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Trad. Antonio Chelini, José P. Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1975.

 

 



[1] Disponível em http://www.cultura.gov.br/site/2006/02/24/linguas-faladas-no-brasil/ acessado em 03.set.2012.

[2] Disponível em  http://www.ajindo.blogspot.com.br  acessado em 03.set.2012.

[3] Disponível em  http://www.copaioabms.blogspot.com.br  acessado em 03.set.2012

 

INTERSECÇÕES DA HISTÓRIA NA ESTÓRIA EM ROA BASTOS

 

Alexandre Luís Gonzaga - UEMS

 

 

Neste ensaio pretendemos fazer uma leitura do texto “Em frente à frente Argentina” de Augusto Roa Bastos, publicado como capítulo da obra “O Livro da Guerra Grande (2002), explorando postulados teóricos sobre o papel da memória e do esquecimento na composição literária, e sobre as intersecções entre literatura e história.

O fio condutor do texto perpassa os acontecimentos da guerra, os fatos históricos reconstituídos em uma revisão do passado de um período específico da Guerra do Paraguai.

O fato histórico oficial dá conta de uma batalha travada em 22 de setembro de 1866, de um lado o exército paraguaio, entrincheirado, do outro as forças militares brasileiras e argentinas, sob o comando do General Bartolomeu Mitre e do Almirante Tamandaré. Nesta batalha não houve representação militar uruguaia. O saldo da batalha foi positivo para o lado paraguaio, muito embora contassem com um efetivo militar inferior.

Assim, é no período imediatamente após esta batalha, a batalha de Curupayti, que o autor começa a narrativa.

O narrador não é explícito, a narrativa se desenvolve na forma de um diálogo entre dois personagens, o General Bartolomeu Mitre e um oficial ferido na batalha, Cándido Lopez, pintor destro, mas que em decorrência de uma explosão teve sua mão direita amputada. Esse fato leva-o a aprender a pintar à sinistra.

O diálogo entre os personagens se dá de forma contínua, sem parágrafos que marquem a passagem de turno e assim possibilitar a imediata identificação de quem fala. Esse modo narrativo é uma tendência da vanguarda literária latina americana que causa um efeito de produção de memória.

O discurso direto é permanente, transparecendo a independência dos personagens e indiretamente categorizando o narrador como implícito. Os personagens se revelam à medida que conversam sobre o que pensam a respeito do ocorrido na batalha e dos motivos que levaram à guerra, ao mesmo tempo em conversam o general começa a traduzir o Inferno de Dante Alighieri[1]. Nesse sentido, o narrador do texto de Roa Bastos é um narrador que é também um personagem, segundo a teoria do narrador de Todorov (apud ZILBERMAN, 2008), ou ainda o narrador autodiegético de Genette (ibidem, 2008). Na obra, então, tem-se dois narradores que dialogam na voz dos personagens ou, na visão de Roland Barthes[2], seria apenas um recitador que domina o código narrativo e o faz nas duas vozes, assim, o autor-narrador é suprimido em nome da história. O que o texto de Roa Bastos propõe é um autor implícito como o diz Chiappini, mas que se opõe ao mesmo tempo:

O autor implícito é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na história (2002, p. 19).

Essa oposição de que se fala se dá em alguns níveis ou instâncias como a dos acontecimentos, do tempo e espaço. Estes são predeterminados pela história e ao Roa Bastos-narrador resta preencher um espaço vazio num tempo determinado e dentro de um evento que, em um primeiro momento, a história leva a crer que é mais importante saber sobre.

A narrativa vai além de preencher um vácuo na história, propõe discutir intersecções como história e literatura, memória e esquecimento, o real e o imaginado na história.

No texto de Roa Bastos pode-se observar um paralelo com o descrito em Mímesis no capítulo “O príncipe cansado”, onde Auerbach nos diz em dado momento que Henrique IV revela a seu servo a vontade de tomar cerveja fraca em meio a uma conversa sobre coisas cotidianas., o então presidente argentino General Mitre trava um extenso diálogo com Cándido Lopez, tenente ferido em batalha, e em decorrência do ferimento ganha a alcunha de “maneta de Curupayti”. No diálogo entre os personagens vemos uma mistura de assuntos cotidianos com assuntos do alto comando e os destinos da guerra. O estranhamento no contato entre pontos de vista distintos, cada um advindo de um estrato social, vai se tornando mais evidente à medida que cada um expressa sua opinião sobre a guerra e sobre a representação pictórica que o tenente pintor faz dela, de um lado e de outro, a tradução do Inferno de Dante que o General empreende.

O diálogo entre os personagens pode ser visto também como metáfora que guarda em essência a marca do conflito eterno entre o civilizado e o bárbaro, entre o colonialista e o colonizado. As relações entre os dois níveis sociais estranhos entre si ressaltam mais o ponto de vista do dominador do que propriamente uma tradução do desejo de conhecimento mútuo.

A primeira intersecção, história e literatura

O conceito de história é questionado porque de acordo com Le Goff (1990) pode significar as ações realizadas pelos homens. Assim, o objeto de procura é o que foi realizado pelos homens. Le Goff ainda nos diz que a história seria como uma narração. Nesse sentido, ela pode ser verdadeira ou falsa mesmo baseada na realidade histórica. Por outro lado, a história como uma narração pode ser puramente imaginária, como uma fábula, o que nos levaria já à próxima intersecção.

As semelhanças que ligam a literatura e a história podem ser interpretadas de diversas maneiras. Pode-se ressaltar que a produção textual pode ser vista como fato histórico, significando que há uma aproximação histórica dos textos.

No passado, a história era domínio da literatura e era estudada não como disciplina, mas como fato histórico, como gênero literário. Furet (apud HOOPER, 2007) nos diz que uma característica da história como gênero literário é precisamente excluir qualquer referência ao aparelho crítico, mas que apresenta uma lição de moral, uma forma regular e ornamentada. Furet (op. cit) continua dizendo que a história perdeu sua rigidez do conteúdo, mas conserva todas as regras estéticas e morais, como um trabalho de escritor.

Thierry (apud HOOPER, 2007, p. 47) assumiu uma posição próxima aos literatos quando defendeu que a história não correspondia necessariamente ao passado, mas era uma construção literária de um escritor politicamente engajado. Aos poucos a história vai se deslocando para assumir posição ao lado da ciência. Afastar-se da literatura significou para a história, segundo Hooper, o primeiro movimento para integrar-se junto ao rol de disciplinas que formam um realismo não mais formal, mas puramente real.

A segunda intersecção, o real e o imaginado

A imaginação histórica é definida e limitada ao preenchimento das lacunas formadas ao longo da inscrição histórica. Para Hooper, o conceito de imaginação histórica possui uma conotação negativa, indicando as impossibilidades e limites da pesquisa factual. Lançar novas interpretações só seria possível caso algum novo documento ou informação fosse descoberto.

O General Mitre inicia a tradução do Inferno de Dante Alighieri ao mesmo tempo em que o Tenente López pinta as batalhas das quais participou. É nesse momento em que o autor, através da voz dos personagens problematiza questões em torno do ato de traduzir um texto.

Quem diz tradução diz traição, dom Mitre. Talvez, meu ladino paladino. Em todo caso, é o mesmo ofício que o seu. A imaginação cria por instinto. [...] em plena refrega eu o vejo fitando, do alto, como os homens se trançam em combate, como as lanças atravessam seus ventres [...]. Você vai guardando essas imagens em sua cabeça insolada e depois, de noite, no sossego, começa sua guerra com os traços e destroços. Você por acaso pensa que essas imagens são fiéis à matança? A memória do momento é a mais enganosa. Nunca estamos no tempo presente, salvo na memória que se torna copiosa, como a sua faz cópias. Toda a história contemporânea é uma fraude.

Giorgio Agamben acredita que haja uma relação secreta entre o gesto e a fotografia, do mesmo modo, há uma relação entre o olhar do pintor e o que este reproduz na tela. Em face de um conhecimento prévio e robusto sobre as técnicas de produção de imagens com o daguerreotipo, Cándido López se preparava para registrar na memória as cenas de guerra que seriam depois registradas. Assim surgiram as várias telas pintadas com motivos daquela guerra.

O filósofo D. Hume apresenta seu conceito que faz distinção entre as ideias da memória e as ideias da imaginação. As ideias da memória se referem a eventos passados na ordem e na forma em que ocorreram, de modo oposto, as ideias da imaginação formam-se a partir de associação livre entre eventos e impressões passadas. Assim, reconhecer quando uma imagem mental faz parte da memória permite vivenciar a repetição de impressões associadas à imagem. A imaginação é chamada por Hume de falsa memória, e a mente às vezes não consegue diferir completamente uma imagem da outra. Como a memória para Hume está estreitamente relacionada às impressões que elas causam quem vem à mente, e essas mesmas impressões servem de base ao processo de imaginação e diferença entre uma e outra está também na liberdade que a memória não tem, situação oposta à imaginação. E desta liberdade de que o General Mitre fala a Cándido López, se no fato histórico as tropas recuaram, General Mitre diz que é só fazê-las avançar na pintura. Ou seja, inventar ou inverter o fato não limitado à memória, mas livremente associado à imaginação.

Oliver Johnson (1987), estudioso da filosofia humeneana, exemplifica a distinção da memória com um mentiroso que acredita nas próprias mentiras, as ideias “da imaginação” são fortes o suficiente para serem confundidas com ideias de memória. Assim, nesse caso as ideias de um mentiroso seriam ideias de memória através de uma simulação já que a memória não precisa necessariamente ter correspondência com uma realidade passada. O conceito de Johnson nos ajuda no sentido de que bastaria por decisão do autor da imagem, Cándido López, mudar a própria memória e realizar nova pintura, desde que não se leve em conta a questão ética.

A terceira intersecção, memória e esquecimento

A forma como as falas de cada personagem se dispõem em cada parágrafo no texto remetem à uma forma de rememorar fatos antigos, as falas se confundem e não oferecem a certeza de quem proferiu determinada fala.

Além da dimensão individual, Chauí (2008) fala da dimensão coletiva ou social, aquela gravada nos museus, monumentos e relatórios. Outra característica a ser ressaltada na dimensão da memória é o sentimento do tempo ou da percepção de algo que fica no passado cada vez mais distante, portanto sujeito a variações de um indivíduo a outro.

Subjacente ao conceito de memória, componente sobre o qual se constrói a identidade tanto a nível individual quanto coletiva, está o esquecimento. Em outras palavras, o esquecimento é parte constituinte da memória, e quando está presente sua ação resulta na impossibilidade de recordação.

Santo Agostinho lançou hipóteses acerca da relação memória-olvido:

Eu, Senhor, cogito este problema, trabalho em mim mesmo, transformei-me numa terra de dificuldades e de suor copioso. Agora, já não escalo as regiões do firmamento; não meço as distâncias dos astros; não procuro as leis do equilíbrio da terra; sou eu que me lembro, eu, o meu espírito (ego animus). Não é de se admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? Oh! Nem sequer chego a conhecer a força da minha memória, sem a qual não poderia dizer mesmo eu! Que direi eu, pois, quando tenho certeza de que me lembro do esquecimento? Poderei afirmar que não existe na minha memória, para que o não esqueça (AGOSTINHO, 1973, p. 16)

A memória em Santo Agostinho é uma faculdade que propicia o entendimento, e através deste é que ocorre a identificação. Assim, a memória é o caminho para o sujeito entender a si próprio e o mundo à sua volta. Nesse sentido, a memória, como atividade reflexiva, está relacionada à imaginação e, por conseguinte, às imagens que vistas de uma perspectiva saussureana ligam-se à linguagem.

Orlandi (in ACHARD et. al., 1999) considera que a memória é feita de esquecimentos e silêncios.   

Cándido López resiste à intenção do General de manipular as representações pictóricas da guerra pelo extermínio constante dos traços originais, pelo esquecimento do original, o fenômeno da representação do imaginado combinado com o visto e lembrado transforma-se no simulacro que o General deseja, a construção de um mito.

A estética das representações

O General Mitre usa pronomes os mais diversos para falar com o Tenente-pintor López, dentre tantos destacamos aqui o pronome “pré-rafaelita” que o General usa quando está a falar sobre o pintor reproduzir pictoricamente uma farsa.

Os pré-rafaelitas eram um grupo de artistas ingleses reunidos em 1848 dedicados principalmente à pintura. Este grupo desejava devolver à arte a pureza e a honestidade que acreditavam existir na arte medieval gótica e que se perdeu com mestres do renascimento como Rafael. Parte do grupo ligou-se aos temas medievais inspirados em Dante Alighieri.

Ao perguntar se o pintor retratou o fuzilamento do brigadeiro Aranda, este responde como deveria retratar essa farsa, chamou-a de “uma pantomima bastarda”. Ante a essa resposta, General Mitre pergunta se o pintor foi pego pela “epidemia rafaelita”, por querer ser fiel à arte e não representar uma farsa. A isso o General Mitre responde que “Via-se algo neogótico nessas suas figuras enfileiradas, em suas legiões quase infernais e nesses céus plácidos sobre batalhas sangrentas [...] de seu inferno saem seus céus angelicais”.

Assim, ante a argumentação de Mitre e a contra argumentação de Cándido López se expõe toda uma problematização da arte pictórica. De um lado o General não acredita que o pintor consegue ser fiel, mas que não haveria algo mais teatral que uma mente mentirosa. De outro lado Cándido López argumenta que faz esboços a partir de fatos concretos, desenhando a história como lhe fora ensinado por seu mestre, não podendo, assim, retratar um embuste enganador, uma “impostura”.

De um ponto de vista agambeano, as representações da guerra contêm um indício histórico que não se pode esquecer e graças ao poder do gesto do pintor, o indício de que se fala remete a outro tempo, mais atual e urgente do que aquele tempo cronológico. Os sujeitos representados nos quadros, sem rostos, só ação, mesmo hoje esquecidos, mesmo que seus nomes não apareçam na história, ainda sim a representação pictórica do gesto exige uma memória, uma negação ao esquecimento. Nesse sentido, a pintura da guerra é mais que uma imagem; é o lugar onde se capturou um fragmento do real entre o sensível e o inteligível.

A metáfora da guerra-inferno, ou do inferno como guerra se impõe quando os personagens dialogam sobre a tradução da obra de Dante e falam também sobre o palco de algumas batalhas, o Gran Chaco. A região do Gran Chaco compreende parte dos territórios paraguaio, brasileiro, argentino e boliviano. É uma planície com floresta densa cujas temperaturas médias estão entre as mais altas do continente sul-americano e na época das chuvas o terreno fica alagadiço. Assim, a pergunta retórica do general adquire um sentido específico: “Quem pode se salvar no inferno do Gran Chaco?”. E complementa com a estrofe de Dante “Lasciate ogne speranza, voi ch’entrate”.

Pouco a pouco as representações pictórico-textuais do inferno propõem uma construção inexorável de que o código linguístico e o código visual (semiótico) se encontram intimamente ligados.

Ainda nas metáforas podemos observar abaixo uma extensa lista de pronomes com os quais o General Mitre trata seu interlocutor, e.g., pintor, mestre, cândido, segundo tenente maneta de Curupayti, cavalariço, descarado ladrão de gado, mestre manco, entre outros.

Quando se dirige ao seu interlocutor, o General utiliza uma variedade de pronomes de tratamento indo de uma linguagem mais íntima e informal, com o uso de axiônimos, ao mais formal e distante, com o uso de títulos formais. Para isto, na voz do personagem, o narrador utiliza um conjunto de substantivos que possuem a função não só de substituir o nome do interlocutário relacionado ao discurso, indica uma determinada fluidez na determinação da identidade do interlocutário pelos olhos do General.

Blikstein (SOUZA et. al. 1981) nos diz que o nome é um instrumento discriminatório da realidade (ousía para Platão), e que a análise (ou discriminação) da ousía vai além realidade, mas inclui também a substância. Em outras palavras, a análise da ousía de Platão indica uma realidade filtrada pela experiência e cognição. Blikstein ainda nos diz que com o papel discriminatório do signo, a língua nos oferece um recorte da realidade, a partir do qual as coisas passam a “existir”, e sobre o nomear as coisas cita:

O nome é a essência das coisas, do objeto denominado. Sua exclusão extingue a coisa. Nada pode existir sem nome porque o nome é a forma e a substância vital. No plano utilitário as coisas só existem pelo nome (CÂMARA CASCUDO, apud BLIKSTEIN, 1981, p. 30)

Aos olhos do General, a identidade de Cándido López é fluída e polissêmica, não é fixa. De acordo com o assunto que estão a tratar o General vê seu interlocutor de modo diferente. Os pronomes de tratamento são usados de modo a suscitar uma nova interpretação da identidade do personagem Cándido López.

Campelo (2007) postula que a classe nominal é a classe geratriz de todas as demais e aparece a partir de experiências sensoriais cujo ponto de partida é o homem, tanto de um ponto de vista físico quanto psicológico, em interação com o meio em que se insere. Assim, os nomes prestam-se a identificar os referentes percebidos pelo homem que continuamente refina sua percepção na direção de uma abstração cada vez maior. Este processo resulta numa matriz nominal constantemente revivida e renovada a cada nova geração linguística.

Ainda segundo Campelo (op. cit.), as nomeações de modo geral precedem as referências de nomes destinados a identificar os seres humanos. A metáfora lexical como efeito de designar com referentes não humanos o homem, faz com que experiências de mundo tornem-se fonte motivadora de antropônimos, e podem se basear em eventos assim como em referentes. Deste modo o General demonstra por um lado extensa formação cultural, de outro o uso de variados modos de tratamento não se restringem ao respeito ou admiração. Percebe-se ora uma intenção de bajular, ora certo tom pejorativo e irônico de tratar o interlocutor. Exemplificamos com dois títulos utilizados que são “insigne mestre”, onde o General trata seu interlocutor elogiosamente chamando-o de notável e célebre mestre e “mestre amestrado na arte da sofística”, neste segundo caso temos um título de alguém que seria um mestre treinado, doutrinado em usar sua arte como forma de enganar seus ouvintes ou seguidores.

Percebe-se, então, que o uso dos pronomes pelo General indica uma relação reversível entre o indivíduo e a imagem que se tem deste mesmo indivíduo em seu sentido existencial.

A questão que se impõe é como significar os atributos dados pelo General ao seu interlocutário.

Bueno (1960, p. 43) diz que um dos caminhos para interpretar o significado das palavras é olhar para a própria palavra e examinar sua afetividade sonora. Para este autor há vocábulos sonoramente agradáveis, brilhantes a que correspondem significados também agradáveis e brilhantes, por outro lado há vocábulos com sons escuros e desagradáveis que têm significados funestos e repulsivos. A vogal tônica em alguns atributos dados à Cândido Lopez correspondem ao que diz Bueno, “maneta” é um termo que, segundo Bueno, remete ao receio, medo e no caso ao que não é plenamente capaz.

Esta é uma especulação evidentemente subjetiva porque há que se encontrar vocábulos que desmintam o receio, medo e incerteza da sílaba baseada em “ê”.

Alguns pronomes são seguidos pelo seu oposto como é o caso de “vulpino” cujo significado se refere às raposas, à astúcia e esperteza, claramente se opondo à “incauto”, aquele que não tem cautela, descuidado. Todos os pronomes podem ser vistos de um ponto de vista negativo e pejorativo. Nesse sentido tem-se um efeito de encadeamento onde de um atributo a outro numa sucessão de significados que ora remetem à condição física de Cândido Lopes, ao posto militar ocupado, e às características de caráter que o General acredita que Cândido Lopes tenha.

Considerações finais

Augusto Roa Bastos trouxe para a história a estória de um diálogo profundo e esclarecedor. De um lado o General Bartolomé Mitre, comandante do exército argentino alçado a presidente; de outro Cándido López, tenente que atuou na batalha de Curupaytí, onde teve sua mão direita amputada, o que o levou a aprender a pintar com a mão esquerda.

Roa Bastos preenche uma lacuna na história mostrando quando teria se dado o início da tradução argentina da Divina Comédia de Dante Alighieri. As pinturas de Cándido López ilustram diversas batalhas ocorridas durante a Guerra Grande, comumente chamada de guerra do Paraguai.

O texto que motivou este ensaio é na verdade metade do texto que faz parte da obra “O livro da Guerra Grande”, com participação de quatro outros escritores cuja temática abordada é a mesma, a guerra do Paraguai. Instaura através do texto uma discussão em torno do fazer e do agir na arte, sendo o fazer uma dimensão ou determinação do modo de agir.

A pista que temos para dizer que Roa Bastos discute numa visão mais ampliada como se dá a relação de subordinação do fazer ao agir está na distinção entre ética e estética. O personagem Cándido López tem uma preocupação em retratar com fidelidade o que vê, logo subordina seu fazer a um agir moralmente, e se opõe ao fazer da arte que leve a um engano naquilo que é próprio da arte, ou seja, conduzir o homem na busca do bem e da beleza plenas. Faintanin (2007) nos auxilia ao dizer que “embora não se chegue diretamente ao bem pela obra de arte, porque ela se ordena ao que é belo e útil, ela muito serve para intuí-lo”. Poderíamos acreditar que uma obra que fosse capaz de promover sentimentos bons para o caráter do homem e de repulsa às carnificinas da guerra tornaria o artista moralmente bom, mas isso não é verdadeiro. A arte revelaria tão somente que o artista é hábil e talentoso para manifestar o belo.

Assim, através de dualidades Roa Bastos traz a tona discussões sobre a constituição das artes pictórica e escrita e seus impasses constitutivos.

 

REFERÊNCIAS

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SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.



[1] A obra A Divina Comédia, é dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso.

[2] R. Barthes discute a morte do autor em texto de mesmo nome,