MUDANÇA SOCIAL
REFLETIDA NO DISCURSO JURÍDICO: accessus
ad alterum torum
Alexandre Luís Gonzaga (UFMS[1])
Marcos Lúcio de Sousa Góis (UFGD[2])
Resumo:
Neste estudo propõe-se rever a concepção de adultério como referência para
mudança na sociedade e problematizar os discursos que permeiam estas mudanças.
O adultério, antes categorizado como crime contra a segurança do estado civil, no
século XX era classificado como delito contra a honra e atualmente não é mais
tipificado como delito. Assim aos poucos os discursos da dominação masculina
(BOURDIEU, 2002) e a ordem do discurso de dominação sobre o feminino (FOUCAULT,
1996) vão tomando uma nova configuração. O machismo é uma forma ideológica que
se sobrepõe ao fazer jurídico e que pode direcionar as decisões tomadas em
julgamentos de primeira e segunda instâncias. As conclusões permite-nos
perceber que o machismo ainda polariza muitas decisões, realidade que vem se
alterando aos poucos. Partindo da concepção de que a dominação masculina
influencia no fazer jurídico, passamos a examinar o discurso jurídico como
reflexo ideológico dos valores masculinos.
Palavras-Chave:
Análise do discurso; discurso jurídico; adultério, ideologia
Introdução
O adultério não é mais categorizado como
crime no Brasil desde 2005 com a publicação do último Código Penal Brasileiro.
A sociedade está mais tolerante e as relações pessoais estão mais flexíveis,
com um progressivo distanciamento do conceito de sacralização do matrimônio. O
matrimônio não é mais a única forma de relacionamento conjugal, novas formas de
relacionamento com base em respeito mútuo e liberdade individual surgiram, sem
que seja exigido o convívio sob o mesmo teto para o reconhecimento de uma
entidade familiar. Assim, o conceito de família está mais abrangente e inclui
novas formas de convivência, passando a ter como principal componente o elo
afetivo, independente de gênero (LOUZADA, 2014), (STJ, 2011).
Mudanças de paradigmas como as
observadas na constituição das famílias fazem com que a realidade social
contrarie insistentemente a determinação legal, e isto se aplica também às
relações paralelas que sempre ocorreram e continuam existindo como uma postura
assumida por homens e mulheres com tendências à infidelidade.
Propomos usar a prática de adultério
como indicador de mudança da mentalidade da sociedade, acredita-se que a prática
do adultério vem sendo tratada com mais tolerância pela sociedade; o ato não
deixou de ser visto como um tipo de violação ao contrato matrimonial, mas à
medida que as relações interpessoais se tornam mais liberais certos
comportamentos que antes eram intoleráveis, passaram a serem vistos de modo
diferente.
De um ponto de vista jurídico adultério
é a violação do contrato matrimonial. O adultério masculino não acarretava em
consequências maiores para o marido, aliás, marido adúltero era uma expressão
que não existia no século 19, de acordo com Oliveira Filho (2011). Somente era
considerado crime caso o marido mantivesse ou sustentasse concubina.
O Código
Philippino ou Ordenações e Leis do
Reino de Portugal vigorou no Brasil até o início do século 19 e no título
XXV, “Do que dorme com mulher casada” diz:
Mandamos que o homem, que dormir
com mulher casada, e que em fama de casada stiver, morra por ello.
Porém, se o adultero for de maior
condição, que o marido della, asi como, se o tal adultero fosse Fidalgo, e o
marido Cavalleiro, ou Scudeiro, ou o adultero Cavalleiro ou Scudeiro, e o
marido peão, não farão as Justiças nelle execução, ate nol-o fazerem saber, e
verem sobre isso nosso mandado.
E toda mulher, que fizer adultério
a seu marido morra por isso.
Samara (1995) diz que a prática das
execuções da lei são desconhecidas pois os documentos se perderam, todavia eram
muitos os processos de divórcio e nulidade de casamentos na Justiça
Eclesiástica desde o século 18.
Cumpre esclarecer que no Brasil do
século 19, o então crime de adultério foi debatido nas esferas cível e
criminal. No Código Penal de 1830[3], o
adultério figurava no capítulo III “DOS CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DO ESTADO
CIVIL, E DOMÉSTICO”. Textualmente o Código Penal (C.P.) trazia:
SECÇÃO III
Adultério
Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio,
será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos.
A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.
Art. 251. O homem casado, que tiver concubina,
teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente.
Art. 252. A accusação deste crime não será
permittida á pessoa, que não seja marido, ou mulher; e estes mesmos não terão
direito de accusar, se em algum tempo tiverem consentido no adulterio.
Art. 253. A accusação por adulterio deverá ser
intentada conjunctamente contra a mulher, e o homem, com quem ella tiver
commettido o crime, se fôr vivo; e um não poderá ser condemnado sem o outro.
Podemos perceber que o adultério é
cometido essencialmente pela mulher casada, ficando o homem mencionado no
Código Penal da época nos casos de concubinato. Contudo, o artigo 250 do
referido código é direto quanto a quem é imputado o crime de adultério sendo
que ao homem, o código se refere apenas como “adúltero”, podendo ser um homem
casado ou solteiro. No artigo 251 a lei não categoriza o ato de ter concubina
como adultério, menciona somente o ato de manter concubina. Assim, o texto da
lei deixa pressuposto que se a mulher cometer adultério a mesma pena será
imposta também ao adúltero, mas não especifica-o, deixa subentendido que é do parceiro
de quem se fala. Assim, o elo de subordinação, nesse caso “a mesma pena” não se
refere mais à mulher casada, mas à adúltera apenada.
O Código de 1830 foi substituído setenta
anos depois, em 1940, e trouxe significativa mudança na classificação do crime
de adultério. Desde o título, passou a ser classificado como crime “contra a
segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. O
novo código textualmente no Capítulo IV traz:
DO ADULTERIO OU
INFIDELIDADE CONJUGAL
Art. 279.
A mulher casada que commetter adulterio será punida com a pena de prisão
cellular por um a tres annos.
§ 1º Em igual pena incorrerá:
1º O marido que tiver concubina teuda e manteuda;
2º A concubina;
3º O co-réo adultero.
§ 2º A accusação deste crime é licita sómente aos
conjuges, que ficarão privados do exercicio desse direito, si por qualquer modo
houverem consentido no adulterio.
Art. 280.
Contra o co-réo adultero não serão admissiveis outras provas sinão o flagrante
delicto, e a resultante de documentos escriptos por elle.
Art. 281.
Acção de adulterio prescreve no fim de tres mezes, contados da data do crime.
Paragrapho unico . O perdão de qualquer dos
conjuges, ou sua reconciliação, extingue todos os effeitos da accusação e
condemnação.
Observe-se que há mudanças conceituais
que não se pode deixar de destacar, como o crime antes ser contra o Estado Civil
e no novo código o crime passa a caráter particular. Dito de outra forma, a
queixa não é mais responsabilidade do Estado, cabe apenas ao cônjuge, como
parte ofendida do fato, a prerrogativa do perdão, não podendo intervir o Estado
nesta decisão, para cessar os efeitos do referido crime. Nesse sentido,
reprimir o adultério não seria mais interesse do Estado, ou da ordem pública,
mas passa a ser restrito ao âmbito privado. Ao Estado cabe regular as relações
no sentido de que se um dos cônjuges se sentir ofendido decorrente de alguma
ação do outro, poderá recorrer ao Estado para mediar a causa.
Fazer constar no Código Penal o disposto
sobre o crime de adultério passou então a ser inócuo, pois que o marido que
recorresse ao poder do Estado para punir a infidelidade da mulher correria o
risco de ser menosprezado e ridicularizado pela sociedade. O silêncio do
Estado, que decorre da descriminalização do adultério, pode ser visto como um indicativo
de anuência com a dissolução do costume ou regra moral ou pelo menos a
aceitação tácita que não implica necessariamente em consentir com a questão.
No Código Penal de 1940, a mudança mais
sensível referente ao tema foi a diminuição da pena, passando a ser de quinze
dias a seis meses, e o prazo de decadência do direito a prestar queixa passa a
ser de um mês. Na mesma linha, o Código de 1940 inclui novas situações puníveis
pelo Estado como a bigamia.
Quanto ao homem, o Código de 1940 passa
a caracterizar mais claramente o adultério masculino, sem a necessidade da
presença de relação de concubinato. Nesse ponto pode-se perceber uma tendência
à igualitarização de direitos entre os gêneros.
O atual Código Penal (promulgado em
2005) descriminaliza o adultério, passando a ser classificado como ilícito
civil. Comparando com a sociedade do século 19, onde a conduta da mulher era
mais vigiada pelo temor e pela repercussão das atitudes de uma esposa perante a
corte e a sociedade, o que temos hoje, para Kosovski (1997) é um posicionamento
mais agressivo socialmente, com movimentos feministas e maior liberdade sexual.
Atualmente, o Estado pune essencialmente
crimes que afetam a honra privada do cidadão, igualmente homem ou mulher.
Assim, o ilícito do adultério enseja processos de dano moral e como forma de
punição estes processos resultam em imposição de pena pecuniária, não ocorrendo
mais pena de reclusão.
Ao deixar a iniciativa da reclamação
para um dos cônjuges, o Estado vai aos poucos silenciando quanto ao delito.
Isso permite transparecer a ideologia machista, pois o homem não tem mais como
invocar o poder do Estado para vingar-lhe a honra manchada, deve ele próprio
fazê-lo através das regras que o Estado, e para isso precisará expor sua
motivação, onde acredita-se que a ideologia machista ganhará materialidade
discursiva.
O aparelho jurídico do Estado é
constituído em sua maioria por homens e em diversos julgamentos de ações que
envolvem o adultério direta ou indiretamente a ideologia machista será tomada
por base na decisão.
A posição do Estado hoje pode ser percebida
no introito de uma apelação cível de indenização por dano moral motivada por
traição matrimonial. O magistrado inicia a sentença estabelecendo dois
posicionamentos:
APELAÇÃO
CÍVEL. RELAÇÃO ENTRE EX-MARIDO E AMANTE. INEXISTENTE ATO ILÍCITO INDENIZÁVEL.
DANO MORAL. INOCORRÊNCIA.
1.
A traição, por si só, bem como as consequências dela oriundas, não geram o
dever de indenizar.
2. A doutrina e a jurisprudência reconhecem a indenização
por abalo moral entre cônjuges ou conviventes quando há cometimento de ilícito
penal um contra o outro, mas não quando apenas há infração aos deveres
matrimoniais. (BRASIL, 2011)
Ao classificar como ato infracional com violação
à instituição matrimonial o magistrado mostra que ao Estado importa somente os
direitos daquele advindos do abalo emocional que o cônjuge possa ter sofrido. A
ideia subjacente de que a instituição matrimonial não possui o mesmo valor
quando comparado aos códigos penais anteriores é evidente. A apelação acima é
impetrada pela cônjuge em desfavor do ex-cônjuge e da amante deste. Ao final da
sentença o apelo foi improvido pelos desembargadores.
Em outra sentença, o cônjuge, separado
há mais de trinta dias vai procurar a ex-esposa em tentativa de reconciliação.
Diante da negativa, o marido, alegando inconformismo, comete homicídio. Em
julgamento na primeira instância é absolvido, como pode-se perceber pelo
introito do processo de apelação abaixo:
RESP. JÚRI. LEGITMA DEFSA DA
HONRA. VIOLAÇÃO AO ART. 25
DO CÓDIGO PENAL. SÚMULA 07DO STJ.
1. Relata a denúncia haver o
marido, incurso nas sanções do art. 121, §2º, incisos I e IV do Código Penal,
efetuado diversos disparos contra sua mulher, de quem se encontrava separado,
residindo ela, há algum tempo (mais de30 dias), em casa de seus pais, onde foi
procurada, ao que parece, em tentativa frustrada de reconciliação, e morta.
2. A absolvição pelo Júri teve
por fundamento ação em legítima defesa da honra, decisão confirmada pelo
Tribunal de Justiça, o entendimento não ser aquela causa excludente desnaturada
pelo fato de o casal estar separado, há algum tempo, e porque "a vítima
não tinha comportamento recatado". (BRASIL, 2001)
Esta apelação chegou ao Superior
Tribunal de Justiça porque a decisão em segunda instância não foi unânime,ou
seja, um dos desembargadores foi contra a apelação baseando-se no princípio da
soberania da decisão do conselho de sentença independentemente de a decisão ir
contra o ordenamento jurídico[4],
vota pela manutenção da absolvição do réu. Assim a ideologia, como um processo
de sujeição inconsciente do sujeito, escamoteia a realidade social de um
conflito que subjaz à ordem aparente do âmbito social. O controle do corpo e do
comportamento femininos associa a mulher ora à figura da maternidade e da
dedicação ao masculino, e ora ao comportamento sexualmente compulsivo e sem
controle, o que motivaria o masculino a exercer um poder disciplinar coercitivo,
o que se dá em alguns momentos através dos aparelhos ideológicos do Estado.
A ideologia é muito discutida na
filosofia e há muitos sentidos atribuídos ao termo de acordo com a abordagem,
denotando a complexidade que envolve este termo. Guareschi (2012) diz, por
exemplo, que talvez não haja conceito com tamanha complexidade e sujeito a
equívocos do que a ideologia, ou seja, é um conceito de sentido deslizante,
sujeito a ressignificações continuamente e que mantém relação com as mais
diversas áreas do fazer humano. O posicionamento neste estudo é baseado em
Pêcheux (1997) que nos apresenta de modo crítico os pressupostos ideológicos da
constituição do sujeito, e especificamente em nosso caso, é a base do sujeito
do fazer jurídico. Wolkmer (2003) nos diz que três tipos de ideologias permeiam
o fazer jurídico, sendo o machismo uma delas. Nota-se que as ideias que
representam a sociedade o fazem somente no nível da aparência, levando os
homens a acreditarem que seus pensamentos são independentes, mas decidindo de
acordo com a ideologia que os domina. A ideologia faz com que os homens
acreditem que a realidade social envolta decorra da ação de instâncias
superiores (Deus, Natureza, Estado, Razão ou Ciência) preexistentes e que tem
precedência tal que leva o indivíduo à sujeição. Através da lógica, as
ideologias buscam se impor como sendo verdades axiomáticas.
De fato, a eficácia de uma ideologia
poderia ser medida pela capacidade de ocultar a dominação que ela exerce. A
ideia de que as mulheres são culpadas pelas agressões que sofrem permeia
parcela significativa da sociedade nacional. Em pesquisa[5]
realizada pelo IPEA revelou-se uma quantidade elevada de sujeitos que concordam
que a mulher merece a agressão sofrida em função do modo de vestir. Os dados
revelaram que dentre os que concordam com a assertiva, quase a metade são
mulheres, o que revela que a ideologia masculina iminentemente machista é
legitimada por uma parcela feminina da sociedade.
1. A dominação
masculina
Bourdieu (2002) faz uma reflexão de como
se dá a dominação masculina e o processo de sujeição feminina abordando o que
chama de economia dos bens simbólicos. Ressaltamos que Bourdieu estudou as
relações de gênero na sociedade Cabila e, a partir daí, extrapolou suas
observações generalizando-as. Por intermédio de seus estudos, esse autor
francês procurou exibir diversos estereótipos observáveis na sociedade
ocidental e a força da ordem masculina. O sociólogo, no entanto justifica que
“a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se
enunciar em discursos que visem legitimá-lo” (2002, p. 27).
Bourdieu faz uma análise dos processos
de dominação masculina sobre o controle do corpo, ou corporificação como sinais
de distinção social. O controle do corpo pode ser observado quanto à
feminização do corpo masculino, que Bourdieu sugere ser uma marca de ascensão
social que reflete o abandono dos valores masculinos.
A ordem social funciona como uma imensa
máquina simbólica que tende a ratificar a dominação sobre a qual se alicerça,
e, ainda segundo Bourdieu (2002), o mundo social constrói o corpo como
realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão
sexualizantes; a diferença fisiológica entre os sexos pode assim ser vista como
justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e
também da divisão do trabalho. Sobre a diferença fisiológica, Bourdieu
relaciona-a com a virilidade:
A virilidade, em seu aspecto
ético mesmo, isto é, enquanto qüididade do vir,
virtus, questão de honra (nif), princípio da conservação e do
aumento da honra, mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da
virilidade física, através, sobretudo, das provas de potência sexual –
defloração da noiva, progenitura masculina abundante etc. – que são esperadas
de um homem que seja realmente um homem (BOURDIEU, 2002, p. 29).
As manifestações de virilidade masculina
fazem ver que as representações de ambos os sexos são assimétricas, mesmo
porque o ato sexual é, de um ponto de vista masculino, uma forma de subjugar,
sujeitar, ou como Bourdieu diz, apropriação, de posse.
Sob a perspectiva masculina de uma
sociedade em mudança, as relações sociais se tornaram mais complexas, e o corpo
feminino acabou por ficar no centro das atenções enquanto objeto de disciplina,
regulamentação e controle.
A
través Del cuerpo hablan las condiciones de trabajo, los hábitos de consumo, la
clase social, el habitus, la cultura.
El cuerpo es pues, como un texto donde se inscriben las relaciones sociales de
producción y dominación. Tendría entonces, un carácter históricamente
determinado, podría decirse que la história del cuerpo humano, es la historia
de su dominación (SANCHEZ, 2011, P. 129).
Visto deste modo, a relação sexual é uma
relação de dominação de um homem e de assujeitamento de uma mulher sob um
aspecto de erotismo e sedução.
O adultério feminino apareceria como um
modo de resistir à dominação masculina ou de subvertê-la. Não podendo a mulher
evitar a posse sexual pelo cônjuge, guarda seu gozo para outro, configurando um
duplo modo de resistência, pela posse e pelo gozo. Na visão de Bourdieu, o gozo
feminino é também a afirmação da virilidade masculina, logo, o não gozo com o
cônjuge é também uma forma de negar sua virilidade.
Considerando posicionamentos legalistas
históricos, a relação conjugal é uma relação de posse e propriedade, o corpo
feminino é de posse da mulher, mas sua propriedade não. A lei judaica diz que a
mulher pertence ao seu marido, assim como quando solteira pertence a seu pai.
Foucault fala sobre a época alexandrina quando a mulher também pertencia ao
marido e por ele era tutelada. Coulanges (1961, p. 69) falando sobre a lei de
Manu diz: “A mulher, durante a sua infância, depende de seu pai; durante a
juventude, de seu marido; por morte de seu marido, de seus filhos; se não tem
filhos, dos parentes próximos de seu marido, porque a mulher jamais deve
governar-se à sua vontade”.
2. Ad alterum torum ire, ideologia e
direito
O termo “adultério” teria duas origens
etimológicas, a primeira encontra-se assim dicionarizada em Cunha (1994):
“adultério: XIII. Do Lat. adulterium
|| adúltero XIV. Do lat. adulterum. A
outra, mais conhecida e reproduzida no âmbito jurídico, pode ser consultada em
Schüler (2002), que traz um verbete mais extenso compreendendo a acepção
religiosa cristã e a acepção jurídica, como o adultério era visto até o Código Penal
de 2005, antes de ser descriminalizado, Schüler inclui ainda a etimologia de
Cunha e adiciona a seguinte forma: “ad
alterum torum ire (ir a outra cama)”.
Na Enciclopédia Judaica[6] o
adultério é definido como o intercurso sexual de uma mulher casada com qualquer
homem que não seja seu marido. Somente pode ser cometido por uma mulher casada,
o intercurso sexual de um homem casado com uma mulher solteira não é
tecnicamente um adultério na lei judaica.
Ulmann (1964), procurando expor as
definições analíticas do significado nos diz que “antes da emissão de uma forma
linguística ocorra dentro do locutor um processo não-físico, um pensamento, conceito, imagem, sentimento,
acto de vontade” (ibid., p. 122, grifos do autor). De outra forma, o signo
reflete a emanação do referente, e então adquiri um significado a partir do que
destaca Ulmann. O adultério, antes de ter este designatum, o era no pensamento, como ato de vontade.
No senso comum, o adultério tem
significados diferentes para homens e mulheres e de um ponto de vista
judaico-cristão, se aplica tanto a casados quanto a solteiros. O Direito
brasileiro, no C.P. de 1940, não aplicava o adultério ao solteiro. Na prática
do adultério, o homem ou mulher solteiros que mantivessem relações com um
parceiro casado, somente ao parceiro casado seria imputado o delito. Na
concepção judaico-cristã, segundo o livro bíblico de Mateus (5:27) Cristo diz:
“Ouvistes que foi dito: não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que
olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela”. Logo,
ao dizer “qualquer” pode-se inferir que se aplica também aos solteiros.
O senso comum diz ainda que a traição
feminina tem caráter de vingança a uma ação anterior do cônjuge. Esse conceito
é confirmado por Almeida (2007) que ainda segmenta o ato em infidelidade sexual
ou emocional. Este autor diz que a manifestação emocional apresentada pela
mulher ao ser traída relaciona-se com o medo de ser abandonada, trocada por
outra mulher, expressa seu ciúme de forma mais clara que o homem; quando
preterida, se sente isolada, insegura e com sentimentos de baixa autoestima.
Por outro lado, o homem, ao descobrir uma traição, sente-se humilhado e
fracassado em manter a posse, manifesta seu ciúme pelo medo de perder o poder e
o domínio sobre a mulher.
Ainda para Almeida (2007) as mulheres
cometem mais infidelidades emocionais em relação ao universo masculino, elas
estariam mais propensas a se engajarem em comportamentos relacionados à
infidelidade, mas os homens têm propensão maior quando a infidelidade é sexual
e são também mais efetivos. Em outras palavras, a mulher se envolve
emocionalmente, e só então se envolveria sexualmente com outro parceiro, oposto
ao homem, que se envolve sexualmente primeiro, e então se envolveria
emocionalmente com a outra parceira. Em função do fator emocional, a traição
feminina demora mais a ocorrer, razão pela qual acredita-se que ocorra em menor
número quando comparada ao adultério masculina.
Em obra específica para o curso de
Direito, jurista Washington Barros Monteiro explica porque o adultério feminino
é visto como sendo mais condenável do que o masculino:
Entretanto do
ponto de vista puramente psicológico, torna-se sem dúvida mais grave o
adultério da mulher. Quase
sempre, a infidelidade no homem é fruto de capricho passageiro ou de um desejo
momentâneo. Seu deslize não afeta de modo algum o amor pela mulher. O adultério desta, ao revés, vem
demonstrar que se acham definitivamente rotos os laços afetivos que a prendiam
ao marido e irremediavelmente comprometida a estabilidade do lar. Para o homem, escreve Somerset
Maugham, uma ligação passageira não tem significação sentimental ao passo que
para a mulher tem. Além disso, os
filhos adulterinos que a mulher venha a ter ficarão necessariamente a cargo do
marido, o que agrava a IMORALIDADE, enquanto os do marido com a amante jamais
estarão sob os cuidados da esposa. Por outras palavras, o adultério da mulher
transfere para o marido o encargo de alimentar prole alheia, ao passo que não
terá essa consequência o adultério do marido. Por isso, a própria sociedade
encara de modo mais severo o adultério da primeira (MONTEIRO, 2012, pág. 117.
Nota-se que o jurista relaciona a
imoralidade diretamente ao feminino construindo um conceito que liga a mulher
virtuosa à boa moral e por oposição, a mulher adúltera à imoralidade. Para o
homem a situação não se configura do mesmo modo, o adultério masculino não tem,
segundo o jurista, caráter moral, mas de busca de satisfação sexual, sem uma
relação direta com moral. O percurso da virtude ao vício pela mulher se dá em
linha direta, para o homem passaria por um estágio intermediário de negação, como
visto em um esquema semiótico, o percurso para o homem iria do moral ao
não-moral (ou amoral) e depois para o imoral. Para a mulher não há este estágio
intermediário, o não-moral, o percurso gerativo de sentido que parte da
condição inicial de moralidade vai diretamente para a imoralidade.
Uma explicação para isso encontramos nos
pressupostos semióticos greimasianos onde nas relações entre os elementos
constitutivos da narrativa a mulher não é sujeito, mas objeto. Visto dentro do
matrimônio, o homem seria o sujeito e a mulher o objeto de desejo, que como
objeto pertencente ao sujeito é para este, sagrado. O adultério é o ato que
profana este objeto, dessacraliza-o e destitui o sujeito de sua posse. Assim,
um objeto não poderia pertencer a dois senhores, mas pelo lado masculino, um
senhor poderia possuir dois objetos. Esta seria uma condição possível se vista
sob a égide do machismo e, nesse sentido, o jurista vê como aceitável o homem
alimentar prole sua fora do casamento, mas inaceitável alimentar prole de
outrem dentro do casamento, sendo essa a ideologia que permeia o conceito de
matrimônio e adultério no Direito.
Para Thomas Hobbes cada homem encara seu
semelhante como um concorrente que precisa ser dominado, como consequência
dessa disputa tem-se uma permanente tensão que somente é aliviada quando se
firma um contrato pelo qual cada um transfere seu poder de governar a si
próprio a um terceiro, o Estado, que deverá impor ordem e segurança à vida
social. Assim, o Estado, no intuito de satisfazer a vontade geral, procura
garantir o uso dos direitos naturais como liberdade e igualdade, sendo a
desigualdade entre gêneros fruto de distorção ideológica. Lyra (1982) nos diz que o caminho para corrigir as distorções das ideologias
começa no exame não do que o homem pensa sobre o Direito, mas do que
juridicamente ele faz.
Wolkmer (2003) nos diz que como fenômeno
social, o Direito só pode ser entendido analisando-se a materialidade e o
processo histórico onde se manifesta. Nesse sentido, o Direito vai refletir
como sistema de regras, os valores vigentes e as vontades do grupo social
dominante. Wolkmer (2003, p.156) defende que quando um grupo ascende ao poder e
de fato o exerce (definido como controle efetivo sobre determinado território),
sua ideologia nada mais será que a própria lei.
Portanova (2003) ainda nos diz sobre ideologias
que influenciam o fazer jurídico e que podem ser percebidas em sentenças
proferidas baseadas na Lei de Introdução
ao Código Civil Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942)
que no seu artigo 4º diz: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de
acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. O Código
de Processo Civil, no artigo 126, estabelece que o juiz não se exima de
sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. Se seu
julgamento não se basear em lei (caso não haja a lei), recorrerá à analogia,
aos costumes e aos princípios gerais de direito.
Visto desse modo, o juiz está sujeito à
interpelação de uma ideologia não necessariamente ligada ao Direito, mas que
permeia seu fazer de modo inequívoco.
Três ideologias são certas de que influenciaram
e continuam a influenciar o juiz ao sentenciar: o capitalismo, o machismo e o
racismo, segundo Wolkmer (2003). Para este jurista, a ideologia está difundida
nos preconceitos, costumes, religião, família, escola, tribunais, asilos,
ciência, cultura, moral, regras gerais de conduta, filosofia, bom-senso, tradição.
Não há malícia no agir, mas age-se de forma imperceptível, inconsciente, por
meio de mecanismos de controles sociais de forma a substituir na consciência a
realidade concreta por uma “realidade” representada (PORTANOVA, 2003, p.16).
Considerações finais
As leis existem para ordenar a vida em
sociedade e surgem quando os conflitos são muito frequentes, assim, vimos
brevemente que o adultério é fato presente na sociedade. O ordenamento jurídico
vai se adaptando à medida que novos comportamentos vão se naturalizando, ora
incluindo, ora excluindo determinado comportamento de acordo com os anseios da
sociedade.
A evolução do discurso jurídico revela que o
adultério era inaceitável para as mulheres, passível de ser punido com a morte;
para o homem era um deslize aceitável, cuja punição dependia da classe social do
adúltero na ordenação filipina, e nos códigos penais posteriores se manteve
rigoroso para as esposas mais do que aos maridos adúlteros.
Vimos que aos poucos o Estado extinguiu sua
pretensão punitiva deixando ao cônjuge o ônus da reclamação. Estas análises são
iniciais em nosso estudo, acreditamos que no desdobrar das análises novas
possibilidades de interpretação surgirão para definir ou redefinir o sistema de
representações simbólicas que permeiam o adultério, que mistificam a relação de
dominação do homem sobre a mulher.
Diante de nossas exposições podemos concluir
que a posição do homem permanece quase inalterada historicamente, modernamente
começa a se alterar com o distanciamento gradativo dos valores ligados a
virilidade e da posição de dominante. A mulher está historicamente numa posição
extremamente vigiada e acreditamos que esta vigilância se arrefece ao longo do
tempo.
A ideologia positivista chamada de doutrina domina
o meio jurídico, contudo não é única, Brandão citando Pêcheux, nos fala das
ideologias pessoais, e são essas ideologias que acredita-se interferirem
grandemente no fazer jurídico. Buscamos ressaltar especificamente a ideologia
machista porque acredita-se que seja esta ideologia pessoal que interfira em
decisões que se relacionam com a relação conjugal ou com a sexualidade de
alguma forma.
As mudanças sociais atualmente trouxeram o que
podemos chamar de crise estrutural de paradigmas axiológicos com importantes
reflexos no fazer jurídico, e mostramos que o adultério como fato social pode
ser um parâmetro nas considerações sobre essas mudanças.
Os modelos epistemológicos da área jurídica são
conduzidos pelo positivismo normativo, baseados na doutrina do direito e toda
sua dogmática. Isso quer dizer que a interpretação do jurista é momento em que
se dá a aplicação da ciência jurídica e, nas palavras de Reale, “o jurista se eleva ao plano teórico dos princípios e
conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e sistematização
dos preceitos e institutos de que se compõe” (2003, p. 322). É, assim, neste
momento que acreditamos estar o jurista mais suscetível à imposições de uma
ideologia mais profunda, que interfere no fazer jurídico, a ideologia baseada
no capitalismo, no racismo e no machismo como dissemos anteriormente.
Esperamos que as
questões que aqui propomos não se dissolvam antes de interpelarem a realidade
social para podermos avaliar as transformações dos dogmas vigentes.
Referências
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[1]
Professor Doutor no curso
de graduação em Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) –
unidade de Jardim e-mail: alexandre_gonzaga@hotmail.com;
[2] Professor Doutor nos Programas
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). e-mail:
mlsgois2008@uol.com.br
[3] Disponível em http://jus.com.br/artigos/18766/a-evolucao-legislativa-do-adulterio-desde-machado-de-assis-aos-tempos-atuais#ixzz3FMv0OjVZ>
acesso em 15.out.2014.
[4]
Em nossa dissertação de
mestrado (GONZAGA, 2013) fizemos uma análise discursiva dos argumentos contidos
no voto deste desembargador, acreditamos que o magistrado era a favor da tese
utilizada pela defesa.
[5]
O Sistema de Indicadores
de Percepção Social (SIPS) é uma pesquisa domiciliar e presencial que visa
captar a percepção das famílias acerca das políticas públicas implementadas
pelo Estado, independentemente dos pesquisados serem usuários ou não dos seus
programas e ações. A pesquisa foi realizada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA. Disponível em
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_antigo.pdf>
Acesso em 02.out.2014.
[6] Jewish Encyclopedia - The unedited full-text of the 1906. Disponível em <http://www.jewishencyclopedia.com/articles/865-adultery>
acesso em 17.nov.2014.
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