SEGREGAÇÃO
E DISPUTA TERRITORIAL NA VILA LEOPOLDINA
Alexandre Luís Gonzaga (UFMS)
RESUMO: Neste estudo procurou-se
definir território e segregação residencial e como se relacionam estes
conceitos em uma disputa territorial tomando como exemplo uma disputa no bairro
da Vila Leopoldina em São Paulo. Fizemos um levantamento histórico do bairro e
como o perfil de moradores do bairro se alterou no período de 1998 a 2012. Essa
alteração de perfil, com a entrada acentuada de moradores de classes sociais
mais elevadas está gerando uma disputa territorial devido à vontade da
prefeitura de construir um conjunto de moradias populares no bairro, em
oposição ao que querem os moradores. Efetuou-se uma análise de dois enunciados
de moradores que não desejam a construção. Utilizamos o aparato teórico da
análise do discurso de linha francesa, especificamente Jacqueline Authier-Revuz
e Michel Pêcheux, para as considerações sobre espaço e território apoiamo-nos
em Milton Santos e Claude Rafestin.
Palavras-chave: segregação
residencial, disputa territorial, análise do discurso
A
cidade de São Paulo é um lugar em contínua transformação e que motiva diversos
estudos das mais variadas áreas do conhecimento. Nosso objetivo é mostrar,
através de dois excertos os discursos que permeiam a vontade de um grupo
socioeconômico de separar ou permanecer separado na perspectiva do padrão
residencial nacional refletido no bairro Vila Leopoldina (município de São
Paulo-SP). Nossa proposta aqui é refletir e discutir sobre esta questão que
emerge da relação do homem com seu espaço físico, a disputa territorial, tendo
o poder como mote inicial, como se exerce ou se tenta exercê-lo de modo a
satisfazer uma vontade individual ou de um grupo.
Refletir
sobre esse conceito nada original pressupõe tratarmos também da subjetividade
humana e suas manifestações simbólicas no espaço através do tempo e, assim,
podemos afirmar que adentramos a uma instância situada nos domínios da
geografia das representações sociais.
O
ponto de partida para o entendimento da questão que se põe aqui, a relação entre
sujeito e espaço, é de um lado o sujeito (individual ou coletivo) que
manifestará ações de representação da realidade material e imaterial. No outro
lado tem-se o ambiente que compõe toda a complexa realidade objetiva. Esta
relação ao longo do tempo produz significações, fazendo com que o simbólico uma
tome forma.
Nosso
objetivo específico é analisar dois excertos de discursos oriundos de uma
disputa territorial sobre o destino a ser dado a uma área pública outrora
ocupada por uma empresa municipal de transportes e que no presente foi
destinada à construção de moradias populares para população de baixa renda.
O
território é constituído a partir das relações de poder, este define- o
território e o território delimita o poder. Desse modo vê-se que estes dois
elementos têm uma relação intrínseca e constitutiva, ou seja, território é essencialmente
relação.
Segundo
Martins (2015) não se faz nada senão a partir de uma interação com o espaço, em
outras palavras, não há como viver sem interação com o espaço geográfico. A
área é uma das dimensões do território, as relações vinculadas à ocupação fazem
parte da constituição do território.
No
Brasil o processo de urbanização, baseado em um modelo capitalista, foi e ainda
é marcado por relações sociais desiguais que resultam no surgimento de
segmentos da sociedade marcadamente segregados, com difícil acesso aos serviços
básicos de infraestrutura urbana em detrimento a outros segmentos que têm fácil
acesso aos serviços sociais como saúde, educação e lazer. As relações sociais
marcadas pela desigualdade contribuem fortemente para a fragmentação do espaço
e o estabelecimento de uma segregação espacial urbana.
A
dinâmica desenvolvimentista incorporada em uma cidade reflete também a vontade
do poder público porque este é o responsável pela implantação e manutenção da
infraestrutura. Assim, o processo de ocupação de áreas urbanas disponíveis
reflete as condições infraestruturais da região e influencia negativamente na
disparidade socioeconômica pois que obras de infraestrutura acabam por
valorizar o entorno, o que resulta no afastamento do segmento social
empobrecido. Estabelece-se assim uma situação dialética porque o Estado ao
investir em infraestrutura para melhorar as condições de vida da população
acaba reforçando a segregação relacionada à habitação. Para Santos (1996, p.
112) “a localização das pessoas no território é, na maioria das vezes, produto
de uma combinação entre forças do mercado e decisões de governo”.
Para
minimizar este efeito negativo que a implantação de infraestrutura traz, que é
a valorização imobiliária do espaço urbano e o conseqüente afastamento do
estrato social pobre para as regiões periféricas, o Estado implanta projetos de
mobilidade urbana. Ao facilitar a mobilidade urbana através de uma rede de
transporte público o governo propicia a oferta de mão de obra aos locais onde
ela é necessária.
Na
cidade de São Paulo pode-se observar a existência de uma extensa frota de
veículos para transporte público. Inicialmente o transporte público era também
oferecido por uma empresa pública, isto foi se alterando aos poucos com a
concessão do serviço público à empresas privadas de transporte. Estas mudanças
ao longo do tempo provocou readequações tais que levaram o governo da cidade a
desativar algumas garagens de ônibus, deixando o espaço ocupado por estas
garagens ocioso e disponível para um novo modo de ocupação. A área de algumas
destas garagens se transformaram em objeto de disputa em face à especulação
imobiliária.
O
destino da ocupação de uma área ociosa em disputa revela uma relação
conflituosa entre o público que procura diminuir a dissimilaridade na
distribuição das moradias na cidade e o privado que procura acentuar a
segregação na direção de tornar o bairro uma área própria de uma nova elite.
Deste modo, a prefeitura de São Paulo designou a área ociosa da garagem de
ônibus da CMTC (atualmente SPTrans) do bairro da Vila Leopoldina para construção
de unidades habitacionais populares.
Ocorreram
no bairro da Vila Leopoldina significativas alterações nas formas de ocupação
do espaço urbano, com a substituição de residências e empresas desativadas por
construções verticais, com apartamentos de alto valor, refletindo a valorização
de bairros vizinhos como os bairros da Lapa e Pinheiros. O processo de
verticalização a partir da demolição e substituição de construções antigas
apaga de certa forma os referentes históricos do bairro em um embate em que o
tradicional é superado pelo moderno.
Após
a década de 1950 o processo de industrialização do município de São Paulo foi
marcado pela instalação de grandes indústrias cuja produção era voltada tanto
para o mercado externo quanto para o crescente mercado interno, alterando a
estrutura urbana de acordo com a dinâmica capitalista interna e que seguia a
tendência capitalista mundial. Como se poderá observar na figura 2, o bairro da
Vila Leopoldina na década de 1950 era pouco urbanizado, tendo poucas ruas.
Visto
segundo a perspectiva do padrão residencial brasileiro sobre o qual nos fala
Prado (2012, p. 42), o padrão de segregação residencial desde os anos 1950
segue um modelo de concentração dual,
ou de dois grupos, o centro rico equipado urbanisticamente e a periferia pobre
e precária de equipamentos urbanos. Contudo, esta tendência pode estar se
alterando, pois pode-se observar que empreendimentos imobiliários de alto
padrão são lançados desde 1998 (figura 4) em bairros outrora periféricos como
Lapa, Pinheiros e em nosso foco de estudo, a Vila Leopoldina. São bairros
distantes da região central da cidade, esta região nos idos de 1950 a 1980
concentrava a quase totalidade de cinemas, teatros, agências bancárias entre
outros serviços, realidade que começou a se alterar com a implantação de
diversos Shopping Centers nas décadas
seguintes.
Santos
(1996, p. 90) apresenta o resultado da planificação urbana que diz ser influenciada
pelo capitalismo e combinada com o processo especulativo do mercado resultando
em distribuição desigual dos equipamentos educacionais e de lazer na cidade de
São Paulo. Segundo Santos, os cinemas, hotéis, museus, restaurantes e teatros
estão concentrados no Centro Histórico e no Centro Expandido, ou seja, as áreas
centrais da cidade. Para este autor o espaço contribui para a formação de uma
estrutura que separa os donos do capital e dos bens de produção daqueles que
portam a força de trabalho, em outras palavras, o desenvolvimento das forças
produtivas e a divisão do trabalho ocorre concomitante à separação dos que se
beneficiam da mais-valia realizada daqueles que a realizam. Ambos os grupos se
dividem no espaço de maneiras diferentes de modo a reproduzir as relações
sociais desiguais.
Resultado
ou consequência da relação social desigual pode ser notada na distribuição das
unidades habitacionais por nível social. Marques (2014, p. 686) diz que mais de
um terço da população de profissionais de nível alto deveria ser movimentada
para que a distribuição dessa classe fosse igual a da distribuição ponderada da
população geral, ou seja, após extenso estudo sobre a estrutura social da
cidade de São Paulo, Marques conclui que as classes superiores são as mais
segregadas em relação àquelas que mais cresceram proporcionalmente nas últimas
décadas, estas tenderam à desconcentração espacial.
Para
demonstrar a segregação das classes superiores Marques utiliza os índices de
dissimilaridade[1]
que demonstram que quanto maior a distância social entre as classes, maior é a
segregação. A ideia de afastamento a que o termo ‘segregação’ remete
permite-nos inferir que este isolamento pode ser de natureza sociológica ou
geográfica, e de certo modo uma associação de ambas as áreas.
Gráfico 1: Esquema de distribuição
por dissimilaridade
Fonte: Feitosa 2005.
O
gráfico acima ilustra o conceito de segregação residencial em um determinado
espaço, quando observada dentro de uma disposição em tabuleiro a menor
segregação pode ser vista no arranjo 1 com distribuição quase uniforme; no
arranjo 2 há alto índice de segregação, os quadrados em verde não estão
distribuídos, mas concentrados em determinada área do tabuleiro. Situação
semelhante ocorre na distribuição das unidades habitacionais em São Paulo, onde
se pode encontrar bairros com unidades habitacionais em sua maioria de alta
renda e opostamente, outros bairros com alta concentração de unidades
habitacionais de baixa renda.
Para
Milton Santos (1996, p. 81) um lugar pode ser a condição da pobreza de um
cidadão, o que se pode observar na Vila Leopoldina é que em um mesmo lugar
convivem a pobreza e a riqueza segundo facilidade de acesso a bens e serviços.
Cada homem vale pelo lugar onde
está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão, depende de sua
localização no território. Seu valor vai mudando, incessantemente, para melhor
ou para pior, em função das diferenças de acessibilidade [...]
Há
uma situação dialética de classes sociais muito particular em uma situação
espacial diversa. Vê-se indivíduos que dispõem de capital, formação cultural e
acesso à informação, elementos que constituem em si os dotam de possibilidades
efetivas que determinam a desigualdade. Isto levando-se em conta que há naquele
lugar indivíduos que não conseguem se quer por em disponibilidade sua força de
trabalho para venda, acentuando mais a valoração de um em detrimento da do
outro.
A
partir do que diz Santos sobre se inferir a existência de uma correlação entre
localização das pessoas e o seu nível social e renda, supomos que a presença de
pobres e mendigos nos arredores do quarteirão nobre pode ser visto por aqueles
indivíduos de alto pode aquisitivo como uma invasão se eu espaço, muito embora
historicamente aquele bairro fosse periférico, moradia de cidadãos de baixo
poder aquisitivo e localização de muitas empresas.
O
caso ipso factum.
A
cidade de São Paulo tem sofrido mudanças bastante sensíveis nas últimas
décadas, a ocupação do espaço geográfico da cidade tem se intensificado de modo
a observar-se poucas extensões de área desocupadas, ou cuja natureza da
ocupação não tenha sido alterada nas últimas décadas.
A
Vila Leopoldina é um bairro que como foi urbanizado a partir de 1950
confirmando o padrão de expansão urbana centro-periferia.
No
início da década de 1950 o bairro contava poucas ruas e no processo de urbanização
que viria nãos anos seguintes instalou-se no bairro muitas indústrias que
ocupavam extensas áreas do espaço disponível.
Neste
bairro se instalou uma garagem de ônibus da Companhia Metropolitana de
Transportes Coletivos (CMTC) na década de 1950, atualmente a empresa está
desativada e a área foi declarada como de interesse social (ZEIS – zona
especial de interesse social) para construção de moradias populares. Este
bairro atualmente enfrenta severos problemas sociais relacionados à pobreza. De
acordo com Coelho (2015)
A
Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) da Vila Leopoldina virou tema de
discussão no bairro. Localizado na Avenida Imperatriz Leopoldina, vizinha a
novos condomínios, a área da antiga garagem de ônibus da CMTC (hoje da SPTrans)
é uma das ZEIS 3 que foi mantida no texto da revisão da Lei de Parcelamento,
Uso e Ocupação do Solo (Lei do Zoneamento) entregue pelo prefeito Fernando
Haddad à Câmara Municipal após 41 audiências e oficinas públicas realizadas
pela Prefeitura. Segundo o secretário de Desenvolvimento Urbano, Fernando de
Mello Franco, a manutenção das Zeis tem o objetivo de diminuir a desigualdade
social e oferecer moradia digna para quem necessita.
Em
2012 o Sindicato Patronal que representa as
Empresas de Compra, Venda Locação e Administração de Imóveis e os Edifícios em
Condomínios Residenciais e Comerciais do Estado de São Paulo (SECOVI-SP)
publicou um estudo sobre o bairro da Vila Leopoldina e que inclui também parte
do bairro da Lapa com a finalidade de apresentar dados para a avaliação de
empresários que pretendiam lançar projetos de verticalização naquela área.
Alguns
dados incluem a área do bairro (7,05 km2), renda média familiar (R$
5.034,00) dos residentes, número de residentes (47.750 residentes). Abaixo
pode-se observar a localização dos lançamentos de empreendimentos de
verticalização residencial no bairro e nos bairros vizinhos.
A
complexidade das relações que se estabelecem em torno da área em disputa faz
com que a abordagem relacional seja dificultosa. A prefeitura do município de
um lado e a associação dos moradores do bairro do outro tornam a relação
aparentemente bilateral e delimitam o campo sociopolítico da relação. A
organização pública também aparece na relação como o agente que impõe as regras
e as leis, ou seja, os códigos que regulam toda a relação. O conteúdo da
relação é que tipo de ocupação se dará a área da antiga garagem da CMTC
localizada na Vila Leopoldina.
Com
base em Rafestin (1993, p. 34) a relação estabelecida entre os lados tem uma
face funcional e uma face processual, a primeira informa se limita a informar o
que vai resultar da relação caso a decisão atual seja mantida, a área está
destinada à construção de moradias populares. O que a análise preliminar
esconde é como se estabeleceu esta relação, em que aspectos da relação o poder
econômico influi. O que não aparece abertamente é o poder ou a capacidade de
poder entre as partes, considerando a capacidade financeira que pode se traduzir
em poder político.
Tanto
a relação da organização pública com a associação de moradores do bairro quanto
a relação dos moradores atuais com os que podem vir a ser moradores constituem
relações dissimétricas. Os moradores que compõem a associação de moradores
buscam reforçar dissimetria na distribuição do tipo de residências existentes
no bairro, a não construção das moradias pretendidas pela prefeitura aumentará
a segregação residencial no bairro que vem se reforçando nos últimos anos
Os
excertos
Recorremos
aos postulados da análise de discurso (AD) para análise dos excertos a seguir. Os
excertos destacados a seguir foram tirados de fontes distintas, um foi obtido
em uma página do website da
Prefeitura de São Paulo onde os moradores dos diversos bairros do município
podem deixar suas opiniões e reclamações, o outro foi extraído de um artigo de
jornal noticiando a disputa territorial.
A
jornalista Talita Bedinelli (jornal El
País[2])
noticiou a repercussão do movimento dos moradores do bairro Vila Leopoldina
para evitar a construção de moradias populares em área pública destinada para
tal finalidade. A jornalista destacou o seguinte enunciado de um morador:
A questão não é que o bairro não
quer moradia popular, isso seria uma coisa higienista. O que a gente quer é
deixar claro que aquilo é um terreno contaminado e que isso pode acabar
adoecendo os moradores.
As
escolhas lexicais denunciam as intenções nem sempre claras do enunciador, a
questão do sentido dado às unidades lexicais é tratado do ponto de vista de seu
enunciador, que segundo Althier Revuz (1998) as comenta ao mesmo tempo em que
as enuncia em um dizer que se volta sobre si mesmo. O sentido do comentário do
enunciador não é explícito, vindo daí a necessidade de mostrá-lo através da
glosa que se desdobra do seu dizer.
O
senso comum vê o sujeito enunciador como fonte autônoma do sentido que comunica
através da língua, Authier-Revuz nos diz que há abordagens teóricas que mostram
que a fala pode ser determinada fora da vontade do sujeito, estaria, portanto,
no discurso como condição constitutiva de existência, é o que a autora chama de
heterogeneidade constitutiva do sujeito e do seu discurso. Esta heterogeneidade
se relaciona com o dialogismo bakhtiniano no sentido de que o dialogismo não se
preocupa com o diálogo sincrônico ou face a face, este pode ser também interno
ao sujeito, um em si reflexivo. Assim as palavras são aquelas já ditas que
ecoam e reverberam em novos enunciados. Nesse sentido, quando o sujeito
enunciador se refere à ‘coisa higienista’, por exemplo, está tão somente
ecoando um já dito em momentos anteriores por si mesmo e por outros sujeitos. Emerge
do conceito do já dito que ecoa e se repete a noção do pré construído que é a
marca do interdiscurso no intradiscurso.
Pêcheux,
fundador da análise do discurso de linha francesa, concebe a ideia do duplo
esquecimento, sendo o primeiro esquecimento aquele em que o sujeito acredita
que é a origem de seu enunciado, ou seja, o sujeito ao ouvir algo que o marca,
que o incomoda de alguma maneira armazena o dito na memória de modo que ao se
deparar com uma situação que se assemelha por algum aspecto com o guardado na
memória, aciona-a e reformula o construto e o enuncia como sendo a origem de
seu próprio enunciado. O segundo esquecimento diz respeito ao sujeito esquecer
que seu enunciado não tem somente um significado, assim quando o enunciador
após pronunciar alguma determinada lexia ou expressão mais complexa
imediatamente procura explicar o sentido que quis dar ao enunciado. É o que
ocorre no primeiro excerto, o enunciador ao perceber que sua escolha lexical
possui mais de um sentido possível, imediatamente glosa-o, como preconiza
Authier-Revuz.
Retomando
o enunciado, o enunciador associa a presença de moradias populares aos graves problemas
higiênicos que São Paulo tinha no início do século XX, sobre isso fala Resende:
... deterioração das condições de
vida da população trabalhadora, de higiene e saneamento das cidades,
proliferação de cortiços e favelas, focos de desordem e reservatórios de
vetores de doenças infecciosas, aglomeração de maltrapilhos nas ruas à espera
de trabalho, surtos epidêmicos que dizimavam a população de recém-chegados, tão
necessários à economia paulista e desejáveis, de qualquer modo, para 'depurar
as veias da mestiçagem primitiva', como afirmava Ruy Barbosa, novos e graves
problemas para os quais, na área da saúde mental, a psiquiatria das freiras, os
asilos provisórios despovoados de médicos eram soluções de amadores (Resende,
1987, p. 42).
Assim,
usa como argumento contra a construção das referidas moradias também um
argumento de higiene do ambiente, a contaminação do solo.
Assim,
longe de ser neutro, o espaço de que se fala se constitui um território em
disputa, pois que as práticas sociais no entorno possuem uma intencionalidade,
o que nos remete à Lefebvre (SCHMID, 2012; ARAÚJO, 2012) que defende que o
espaço seria tal qual um instrumento político que é manipulado com uma intenção
específica mesmo quando a intenção se dissimula como coerente espacialmente.
Ainda fazendo referência ao filósofo francês e sua concepção do espaço urbano,
este possuiria atributos topológicos que não podem deixar de ser decodificados,
e para isso o filósofo propõe um método tridimensional, a simbólica, a
paradigmática e a sintagmática. A dimensão simbólica faz referência às
ideologias que se materializam em representações no urbano (e nosso caso
específico, podemos considerar que as unidades habitacionais do bairro em
estudo que tem valor de mercado na casa dos milhões de reais representam bem a
ideologia de uma classe dominante que deseja manter ou aumentar o
distanciamento da classe trabalhadora).
A
segunda dimensão considerada por Léfèbvre, a paradigmática faz referência às
oposições espaciais ou relações de isotopia e heterotopia, sendo as relações de
isotopia algo como a oposição entre o espaço individual e o coletivo e a
heterotopia sendo o espaço do Outro. Em nosso estudo esta dimensão aparece bem
clara quando consideramos que os moradores preferem a instalação de alguma obra
pública que satisfaça os desejos dos moradores desde que estes não
comprometam-se a dividir seu espaço territorial com o Outro de uma classe
social inferior.
A
terceira dimensão de Léfèbvre é a sintagmática, uma dimensão em que se
sistematiza a prática urbana e que é a mais evidente porque a sociedade urbana
é toda um sistema repleto de outros sistemas menores. Os sistemas permitem uma
melhor apropriação do espaço urbano e em nosso estudo vemos que algumas regras
de regulam o espaço urbano permitem a homogeneização, mas também a
heterogeneização do padrão residencial, a integralização e a segregação, e
assim vemos a dialética estabelecida.
Trouxemos
brevemente o filósofo francês para este estudo porque percebemos um diálogo,
uma correspondência da sua concepção tridimensional com a disputa territorial
destacada aqui.
O
segundo excerto é de outro morador postado na página de reclamações e sugestões
do website da Prefeitura de São Paulo
pode ser observado abaixo:
Com relação a área localizada no
bairro da Vila Leopoldina antiga garagem da CMTC, seria de interesse da
população do bairro a implantação de uma biblioteca junto com uma praça para
revitalização da área hoje degradada em função do auto consumo de drogas,
descartando também o desejo da administração pública atual de implantar um
conjunto habitacional já que segundo avaliação do solo elaborado pela Cetesb o
mesmo se encontra inapropriado pelo auto índice de contaminação
Neste
excerto chamamos a atenção para a informação adicional não mencionada até então
por outros moradores que é a degradação da área em função do alto consumo de
drogas. O que o morador deixa transparecer em seu enunciado é que a área está
degradada pelo consumo de drogas. Este dado novo, não mencionado até então,
deve ser considerado para uma melhor análise do contexto em que se deu este
enunciado.
Não
sabemos a formação discursiva do morador, mas pode-se sugerir talvez que seja
um morador cuja escolaridade não foi suficiente para distinguir a diferença
entre “alto” e “auto”, uma vez que no mesmo enunciado há duas ocorrências com o
mesmo equivoco. Todavia, uma preocupação deste morador não associa o consumo de
drogas à construção de moradias populares, apenas indicando a contaminação do
solo como mote impeditivo da obra.
Por
fim, fazendo referência a Milton Santos (1996) o território deve ser usado como
forma de se alcançar um projeto social igualitário; a sociedade civil é também
território, assim, as desigualdades sociais são também territoriais e se
expressam também por meio da linguagem.
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J. Palavras incertas: as
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Revisão técnica da tradução Eni Pulccinelli Orlandi Campinas: Ed. da UNICAMP.
1998
______
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Arquivo disponível em http://www.secovi.com.br/files/Arquivos/vilaleopoldina-2012.pdf.
Acesso em 9.nov.2015.
[1] O índice de dissimilaridade é uma medida da uniformidade demográfica com que dois grupos são distribuídos através das áreas geográficas de componentes que compõem uma área maior. A pontuação do índice também pode ser interpretado como a percentagem de um dos dois grupos incluídos no cálculo de que teria que se mover para diferentes áreas geográficas, a fim de produzir uma distribuição que coincide com a da área maior. O índice de dissimilaridade pode ser usado como uma medida de segregação. Centro de estudos da população da Universidade de Michigan, disponível em http://enceladus.isr.umich.edu/race/calculate.html.
[2] Edição eletrônica de 4 de abril de 2015, disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/02/
politica/1427938647_756022.html. Acesso em 20.nov.2015.
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