sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

 

SEGREGAÇÃO E DISPUTA TERRITORIAL NA VILA LEOPOLDINA

Alexandre Luís Gonzaga (UFMS)

 

RESUMO: Neste estudo procurou-se definir território e segregação residencial e como se relacionam estes conceitos em uma disputa territorial tomando como exemplo uma disputa no bairro da Vila Leopoldina em São Paulo. Fizemos um levantamento histórico do bairro e como o perfil de moradores do bairro se alterou no período de 1998 a 2012. Essa alteração de perfil, com a entrada acentuada de moradores de classes sociais mais elevadas está gerando uma disputa territorial devido à vontade da prefeitura de construir um conjunto de moradias populares no bairro, em oposição ao que querem os moradores. Efetuou-se uma análise de dois enunciados de moradores que não desejam a construção. Utilizamos o aparato teórico da análise do discurso de linha francesa, especificamente Jacqueline Authier-Revuz e Michel Pêcheux, para as considerações sobre espaço e território apoiamo-nos em Milton Santos e Claude Rafestin.

 

Palavras-chave: segregação residencial, disputa territorial, análise do discurso

 

 

 

A cidade de São Paulo é um lugar em contínua transformação e que motiva diversos estudos das mais variadas áreas do conhecimento. Nosso objetivo é mostrar, através de dois excertos os discursos que permeiam a vontade de um grupo socioeconômico de separar ou permanecer separado na perspectiva do padrão residencial nacional refletido no bairro Vila Leopoldina (município de São Paulo-SP). Nossa proposta aqui é refletir e discutir sobre esta questão que emerge da relação do homem com seu espaço físico, a disputa territorial, tendo o poder como mote inicial, como se exerce ou se tenta exercê-lo de modo a satisfazer uma vontade individual ou de um grupo.

Refletir sobre esse conceito nada original pressupõe tratarmos também da subjetividade humana e suas manifestações simbólicas no espaço através do tempo e, assim, podemos afirmar que adentramos a uma instância situada nos domínios da geografia das representações sociais.

O ponto de partida para o entendimento da questão que se põe aqui, a relação entre sujeito e espaço, é de um lado o sujeito (individual ou coletivo) que manifestará ações de representação da realidade material e imaterial. No outro lado tem-se o ambiente que compõe toda a complexa realidade objetiva. Esta relação ao longo do tempo produz significações, fazendo com que o simbólico uma tome forma.

Nosso objetivo específico é analisar dois excertos de discursos oriundos de uma disputa territorial sobre o destino a ser dado a uma área pública outrora ocupada por uma empresa municipal de transportes e que no presente foi destinada à construção de moradias populares para população de baixa renda.

O território é constituído a partir das relações de poder, este define- o território e o território delimita o poder. Desse modo vê-se que estes dois elementos têm uma relação intrínseca e constitutiva, ou seja, território é essencialmente relação.

Segundo Martins (2015) não se faz nada senão a partir de uma interação com o espaço, em outras palavras, não há como viver sem interação com o espaço geográfico. A área é uma das dimensões do território, as relações vinculadas à ocupação fazem parte da constituição do território.

No Brasil o processo de urbanização, baseado em um modelo capitalista, foi e ainda é marcado por relações sociais desiguais que resultam no surgimento de segmentos da sociedade marcadamente segregados, com difícil acesso aos serviços básicos de infraestrutura urbana em detrimento a outros segmentos que têm fácil acesso aos serviços sociais como saúde, educação e lazer. As relações sociais marcadas pela desigualdade contribuem fortemente para a fragmentação do espaço e o estabelecimento de uma segregação espacial urbana.

A dinâmica desenvolvimentista incorporada em uma cidade reflete também a vontade do poder público porque este é o responsável pela implantação e manutenção da infraestrutura. Assim, o processo de ocupação de áreas urbanas disponíveis reflete as condições infraestruturais da região e influencia negativamente na disparidade socioeconômica pois que obras de infraestrutura acabam por valorizar o entorno, o que resulta no afastamento do segmento social empobrecido. Estabelece-se assim uma situação dialética porque o Estado ao investir em infraestrutura para melhorar as condições de vida da população acaba reforçando a segregação relacionada à habitação. Para Santos (1996, p. 112) “a localização das pessoas no território é, na maioria das vezes, produto de uma combinação entre forças do mercado e decisões de governo”.

Para minimizar este efeito negativo que a implantação de infraestrutura traz, que é a valorização imobiliária do espaço urbano e o conseqüente afastamento do estrato social pobre para as regiões periféricas, o Estado implanta projetos de mobilidade urbana. Ao facilitar a mobilidade urbana através de uma rede de transporte público o governo propicia a oferta de mão de obra aos locais onde ela é necessária.

Na cidade de São Paulo pode-se observar a existência de uma extensa frota de veículos para transporte público. Inicialmente o transporte público era também oferecido por uma empresa pública, isto foi se alterando aos poucos com a concessão do serviço público à empresas privadas de transporte. Estas mudanças ao longo do tempo provocou readequações tais que levaram o governo da cidade a desativar algumas garagens de ônibus, deixando o espaço ocupado por estas garagens ocioso e disponível para um novo modo de ocupação. A área de algumas destas garagens se transformaram em objeto de disputa em face à especulação imobiliária.

O destino da ocupação de uma área ociosa em disputa revela uma relação conflituosa entre o público que procura diminuir a dissimilaridade na distribuição das moradias na cidade e o privado que procura acentuar a segregação na direção de tornar o bairro uma área própria de uma nova elite. Deste modo, a prefeitura de São Paulo designou a área ociosa da garagem de ônibus da CMTC (atualmente SPTrans) do bairro da Vila Leopoldina para construção de unidades habitacionais populares.

Ocorreram no bairro da Vila Leopoldina significativas alterações nas formas de ocupação do espaço urbano, com a substituição de residências e empresas desativadas por construções verticais, com apartamentos de alto valor, refletindo a valorização de bairros vizinhos como os bairros da Lapa e Pinheiros. O processo de verticalização a partir da demolição e substituição de construções antigas apaga de certa forma os referentes históricos do bairro em um embate em que o tradicional é superado pelo moderno.

Após a década de 1950 o processo de industrialização do município de São Paulo foi marcado pela instalação de grandes indústrias cuja produção era voltada tanto para o mercado externo quanto para o crescente mercado interno, alterando a estrutura urbana de acordo com a dinâmica capitalista interna e que seguia a tendência capitalista mundial. Como se poderá observar na figura 2, o bairro da Vila Leopoldina na década de 1950 era pouco urbanizado, tendo poucas ruas.

Visto segundo a perspectiva do padrão residencial brasileiro sobre o qual nos fala Prado (2012, p. 42), o padrão de segregação residencial desde os anos 1950 segue um modelo de concentração dual, ou de dois grupos, o centro rico equipado urbanisticamente e a periferia pobre e precária de equipamentos urbanos. Contudo, esta tendência pode estar se alterando, pois pode-se observar que empreendimentos imobiliários de alto padrão são lançados desde 1998 (figura 4) em bairros outrora periféricos como Lapa, Pinheiros e em nosso foco de estudo, a Vila Leopoldina. São bairros distantes da região central da cidade, esta região nos idos de 1950 a 1980 concentrava a quase totalidade de cinemas, teatros, agências bancárias entre outros serviços, realidade que começou a se alterar com a implantação de diversos Shopping Centers nas décadas seguintes.

Santos (1996, p. 90) apresenta o resultado da planificação urbana que diz ser influenciada pelo capitalismo e combinada com o processo especulativo do mercado resultando em distribuição desigual dos equipamentos educacionais e de lazer na cidade de São Paulo. Segundo Santos, os cinemas, hotéis, museus, restaurantes e teatros estão concentrados no Centro Histórico e no Centro Expandido, ou seja, as áreas centrais da cidade. Para este autor o espaço contribui para a formação de uma estrutura que separa os donos do capital e dos bens de produção daqueles que portam a força de trabalho, em outras palavras, o desenvolvimento das forças produtivas e a divisão do trabalho ocorre concomitante à separação dos que se beneficiam da mais-valia realizada daqueles que a realizam. Ambos os grupos se dividem no espaço de maneiras diferentes de modo a reproduzir as relações sociais desiguais.

Resultado ou consequência da relação social desigual pode ser notada na distribuição das unidades habitacionais por nível social. Marques (2014, p. 686) diz que mais de um terço da população de profissionais de nível alto deveria ser movimentada para que a distribuição dessa classe fosse igual a da distribuição ponderada da população geral, ou seja, após extenso estudo sobre a estrutura social da cidade de São Paulo, Marques conclui que as classes superiores são as mais segregadas em relação àquelas que mais cresceram proporcionalmente nas últimas décadas, estas tenderam à desconcentração espacial.

Para demonstrar a segregação das classes superiores Marques utiliza os índices de dissimilaridade[1] que demonstram que quanto maior a distância social entre as classes, maior é a segregação. A ideia de afastamento a que o termo ‘segregação’ remete permite-nos inferir que este isolamento pode ser de natureza sociológica ou geográfica, e de certo modo uma associação de ambas as áreas.

           Gráfico 1: Esquema de distribuição por dissimilaridade

           Fonte: Feitosa 2005.

O gráfico acima ilustra o conceito de segregação residencial em um determinado espaço, quando observada dentro de uma disposição em tabuleiro a menor segregação pode ser vista no arranjo 1 com distribuição quase uniforme; no arranjo 2 há alto índice de segregação, os quadrados em verde não estão distribuídos, mas concentrados em determinada área do tabuleiro. Situação semelhante ocorre na distribuição das unidades habitacionais em São Paulo, onde se pode encontrar bairros com unidades habitacionais em sua maioria de alta renda e opostamente, outros bairros com alta concentração de unidades habitacionais de baixa renda.

Para Milton Santos (1996, p. 81) um lugar pode ser a condição da pobreza de um cidadão, o que se pode observar na Vila Leopoldina é que em um mesmo lugar convivem a pobreza e a riqueza segundo facilidade de acesso a bens e serviços.

Cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão, depende de sua localização no território. Seu valor vai mudando, incessantemente, para melhor ou para pior, em função das diferenças de acessibilidade [...]

Há uma situação dialética de classes sociais muito particular em uma situação espacial diversa. Vê-se indivíduos que dispõem de capital, formação cultural e acesso à informação, elementos que constituem em si os dotam de possibilidades efetivas que determinam a desigualdade. Isto levando-se em conta que há naquele lugar indivíduos que não conseguem se quer por em disponibilidade sua força de trabalho para venda, acentuando mais a valoração de um em detrimento da do outro.

A partir do que diz Santos sobre se inferir a existência de uma correlação entre localização das pessoas e o seu nível social e renda, supomos que a presença de pobres e mendigos nos arredores do quarteirão nobre pode ser visto por aqueles indivíduos de alto pode aquisitivo como uma invasão se eu espaço, muito embora historicamente aquele bairro fosse periférico, moradia de cidadãos de baixo poder aquisitivo e localização de muitas empresas.

O caso ipso factum.

A cidade de São Paulo tem sofrido mudanças bastante sensíveis nas últimas décadas, a ocupação do espaço geográfico da cidade tem se intensificado de modo a observar-se poucas extensões de área desocupadas, ou cuja natureza da ocupação não tenha sido alterada nas últimas décadas.

A Vila Leopoldina é um bairro que como foi urbanizado a partir de 1950 confirmando o padrão de expansão urbana centro-periferia.

No início da década de 1950 o bairro contava poucas ruas e no processo de urbanização que viria nãos anos seguintes instalou-se no bairro muitas indústrias que ocupavam extensas áreas do espaço disponível.

Neste bairro se instalou uma garagem de ônibus da Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC) na década de 1950, atualmente a empresa está desativada e a área foi declarada como de interesse social (ZEIS – zona especial de interesse social) para construção de moradias populares. Este bairro atualmente enfrenta severos problemas sociais relacionados à pobreza. De acordo com Coelho (2015)

A Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) da Vila Leopoldina virou tema de discussão no bairro. Localizado na Avenida Imperatriz Leopoldina, vizinha a novos condomínios, a área da antiga garagem de ônibus da CMTC (hoje da SPTrans) é uma das ZEIS 3 que foi mantida no texto da revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei do Zoneamento) entregue pelo prefeito Fernando Haddad à Câmara Municipal após 41 audiências e oficinas públicas realizadas pela Prefeitura. Segundo o secretário de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, a manutenção das Zeis tem o objetivo de diminuir a desigualdade social e oferecer moradia digna para quem necessita.

 

Em 2012 o Sindicato Patronal que representa as Empresas de Compra, Venda Locação e Administração de Imóveis e os Edifícios em Condomínios Residenciais e Comerciais do Estado de São Paulo (SECOVI-SP) publicou um estudo sobre o bairro da Vila Leopoldina e que inclui também parte do bairro da Lapa com a finalidade de apresentar dados para a avaliação de empresários que pretendiam lançar projetos de verticalização naquela área.

Alguns dados incluem a área do bairro (7,05 km2), renda média familiar (R$ 5.034,00) dos residentes, número de residentes (47.750 residentes). Abaixo pode-se observar a localização dos lançamentos de empreendimentos de verticalização residencial no bairro e nos bairros vizinhos.

A complexidade das relações que se estabelecem em torno da área em disputa faz com que a abordagem relacional seja dificultosa. A prefeitura do município de um lado e a associação dos moradores do bairro do outro tornam a relação aparentemente bilateral e delimitam o campo sociopolítico da relação. A organização pública também aparece na relação como o agente que impõe as regras e as leis, ou seja, os códigos que regulam toda a relação. O conteúdo da relação é que tipo de ocupação se dará a área da antiga garagem da CMTC localizada na Vila Leopoldina.

Com base em Rafestin (1993, p. 34) a relação estabelecida entre os lados tem uma face funcional e uma face processual, a primeira informa se limita a informar o que vai resultar da relação caso a decisão atual seja mantida, a área está destinada à construção de moradias populares. O que a análise preliminar esconde é como se estabeleceu esta relação, em que aspectos da relação o poder econômico influi. O que não aparece abertamente é o poder ou a capacidade de poder entre as partes, considerando a capacidade financeira que pode se traduzir em poder político.

Tanto a relação da organização pública com a associação de moradores do bairro quanto a relação dos moradores atuais com os que podem vir a ser moradores constituem relações dissimétricas. Os moradores que compõem a associação de moradores buscam reforçar dissimetria na distribuição do tipo de residências existentes no bairro, a não construção das moradias pretendidas pela prefeitura aumentará a segregação residencial no bairro que vem se reforçando nos últimos anos

Os excertos

Recorremos aos postulados da análise de discurso (AD) para análise dos excertos a seguir. Os excertos destacados a seguir foram tirados de fontes distintas, um foi obtido em uma página do website da Prefeitura de São Paulo onde os moradores dos diversos bairros do município podem deixar suas opiniões e reclamações, o outro foi extraído de um artigo de jornal noticiando a disputa territorial.

A jornalista Talita Bedinelli (jornal El País[2]) noticiou a repercussão do movimento dos moradores do bairro Vila Leopoldina para evitar a construção de moradias populares em área pública destinada para tal finalidade. A jornalista destacou o seguinte enunciado de um morador:

A questão não é que o bairro não quer moradia popular, isso seria uma coisa higienista. O que a gente quer é deixar claro que aquilo é um terreno contaminado e que isso pode acabar adoecendo os moradores.

As escolhas lexicais denunciam as intenções nem sempre claras do enunciador, a questão do sentido dado às unidades lexicais é tratado do ponto de vista de seu enunciador, que segundo Althier Revuz (1998) as comenta ao mesmo tempo em que as enuncia em um dizer que se volta sobre si mesmo. O sentido do comentário do enunciador não é explícito, vindo daí a necessidade de mostrá-lo através da glosa que se desdobra do seu dizer.

O senso comum vê o sujeito enunciador como fonte autônoma do sentido que comunica através da língua, Authier-Revuz nos diz que há abordagens teóricas que mostram que a fala pode ser determinada fora da vontade do sujeito, estaria, portanto, no discurso como condição constitutiva de existência, é o que a autora chama de heterogeneidade constitutiva do sujeito e do seu discurso. Esta heterogeneidade se relaciona com o dialogismo bakhtiniano no sentido de que o dialogismo não se preocupa com o diálogo sincrônico ou face a face, este pode ser também interno ao sujeito, um em si reflexivo. Assim as palavras são aquelas já ditas que ecoam e reverberam em novos enunciados. Nesse sentido, quando o sujeito enunciador se refere à ‘coisa higienista’, por exemplo, está tão somente ecoando um já dito em momentos anteriores por si mesmo e por outros sujeitos. Emerge do conceito do já dito que ecoa e se repete a noção do pré construído que é a marca do interdiscurso no intradiscurso.

Pêcheux, fundador da análise do discurso de linha francesa, concebe a ideia do duplo esquecimento, sendo o primeiro esquecimento aquele em que o sujeito acredita que é a origem de seu enunciado, ou seja, o sujeito ao ouvir algo que o marca, que o incomoda de alguma maneira armazena o dito na memória de modo que ao se deparar com uma situação que se assemelha por algum aspecto com o guardado na memória, aciona-a e reformula o construto e o enuncia como sendo a origem de seu próprio enunciado. O segundo esquecimento diz respeito ao sujeito esquecer que seu enunciado não tem somente um significado, assim quando o enunciador após pronunciar alguma determinada lexia ou expressão mais complexa imediatamente procura explicar o sentido que quis dar ao enunciado. É o que ocorre no primeiro excerto, o enunciador ao perceber que sua escolha lexical possui mais de um sentido possível, imediatamente glosa-o, como preconiza Authier-Revuz.

Retomando o enunciado, o enunciador associa a presença de moradias populares aos graves problemas higiênicos que São Paulo tinha no início do século XX, sobre isso fala Resende:

... deterioração das condições de vida da população trabalhadora, de higiene e saneamento das cidades, proliferação de cortiços e favelas, focos de desordem e reservatórios de vetores de doenças infecciosas, aglomeração de maltrapilhos nas ruas à espera de trabalho, surtos epidêmicos que dizimavam a população de recém-chegados, tão necessários à economia paulista e desejáveis, de qualquer modo, para 'depurar as veias da mestiçagem primitiva', como afirmava Ruy Barbosa, novos e graves problemas para os quais, na área da saúde mental, a psiquiatria das freiras, os asilos provisórios despovoados de médicos eram soluções de amadores (Resende, 1987, p. 42).

Assim, usa como argumento contra a construção das referidas moradias também um argumento de higiene do ambiente, a contaminação do solo.

Assim, longe de ser neutro, o espaço de que se fala se constitui um território em disputa, pois que as práticas sociais no entorno possuem uma intencionalidade, o que nos remete à Lefebvre (SCHMID, 2012; ARAÚJO, 2012) que defende que o espaço seria tal qual um instrumento político que é manipulado com uma intenção específica mesmo quando a intenção se dissimula como coerente espacialmente. Ainda fazendo referência ao filósofo francês e sua concepção do espaço urbano, este possuiria atributos topológicos que não podem deixar de ser decodificados, e para isso o filósofo propõe um método tridimensional, a simbólica, a paradigmática e a sintagmática. A dimensão simbólica faz referência às ideologias que se materializam em representações no urbano (e nosso caso específico, podemos considerar que as unidades habitacionais do bairro em estudo que tem valor de mercado na casa dos milhões de reais representam bem a ideologia de uma classe dominante que deseja manter ou aumentar o distanciamento da classe trabalhadora).

A segunda dimensão considerada por Léfèbvre, a paradigmática faz referência às oposições espaciais ou relações de isotopia e heterotopia, sendo as relações de isotopia algo como a oposição entre o espaço individual e o coletivo e a heterotopia sendo o espaço do Outro. Em nosso estudo esta dimensão aparece bem clara quando consideramos que os moradores preferem a instalação de alguma obra pública que satisfaça os desejos dos moradores desde que estes não comprometam-se a dividir seu espaço territorial com o Outro de uma classe social inferior.

A terceira dimensão de Léfèbvre é a sintagmática, uma dimensão em que se sistematiza a prática urbana e que é a mais evidente porque a sociedade urbana é toda um sistema repleto de outros sistemas menores. Os sistemas permitem uma melhor apropriação do espaço urbano e em nosso estudo vemos que algumas regras de regulam o espaço urbano permitem a homogeneização, mas também a heterogeneização do padrão residencial, a integralização e a segregação, e assim vemos a dialética estabelecida.

Trouxemos brevemente o filósofo francês para este estudo porque percebemos um diálogo, uma correspondência da sua concepção tridimensional com a disputa territorial destacada aqui.

O segundo excerto é de outro morador postado na página de reclamações e sugestões do website da Prefeitura de São Paulo pode ser observado abaixo:

Com relação a área localizada no bairro da Vila Leopoldina antiga garagem da CMTC, seria de interesse da população do bairro a implantação de uma biblioteca junto com uma praça para revitalização da área hoje degradada em função do auto consumo de drogas, descartando também o desejo da administração pública atual de implantar um conjunto habitacional já que segundo avaliação do solo elaborado pela Cetesb o mesmo se encontra inapropriado pelo auto índice de contaminação

Neste excerto chamamos a atenção para a informação adicional não mencionada até então por outros moradores que é a degradação da área em função do alto consumo de drogas. O que o morador deixa transparecer em seu enunciado é que a área está degradada pelo consumo de drogas. Este dado novo, não mencionado até então, deve ser considerado para uma melhor análise do contexto em que se deu este enunciado.

Não sabemos a formação discursiva do morador, mas pode-se sugerir talvez que seja um morador cuja escolaridade não foi suficiente para distinguir a diferença entre “alto” e “auto”, uma vez que no mesmo enunciado há duas ocorrências com o mesmo equivoco. Todavia, uma preocupação deste morador não associa o consumo de drogas à construção de moradias populares, apenas indicando a contaminação do solo como mote impeditivo da obra.

Por fim, fazendo referência a Milton Santos (1996) o território deve ser usado como forma de se alcançar um projeto social igualitário; a sociedade civil é também território, assim, as desigualdades sociais são também territoriais e se expressam também por meio da linguagem.

 

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, J. A. Sobre a cidade e o urbano em Henri Léfèbvre. GEOUSP – espaço e tempo, São Paulo, n. 32, PP. 133 – 142, 2012.

AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Tradução de Claudia R. Castellanos Pfeiffer, et al. Revisão técnica da tradução Eni Pulccinelli Orlandi Campinas: Ed. da UNICAMP. 1998

______ Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução de Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. In: Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 19: 25-42, jul./dez. 1990. Disponível em http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/cel/article /view/3012/4095. Acesso em 18.nov.2015.

BÓGUS, L.M., PATERNAL, S. (org.), RIBEIRO, L.C. (coord). São Paulo: transformações na ordem urbana [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015. Disponível em: http://transformacoes.observatoriodasmetropoles.net/ livros/?edicao=sao%20paulo#epubcfi(/6/6[creditos.xhtml]!4[metropole-sao-paulo]/2/1:0). Acesso em 10.nov.2015.

FEITOSA, F. F. Índices espaciais para mensurar a segregação residencial: o caso de São José dos Campos (SP). 2005. 169 f. Dissertação (Mestrado). Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, São José dos Campos, 2005.

MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: transformações na década de 2000. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 57, nr. 3, 2014, PP. 675 a 710. Disponível em:

 http://www.fflch.usp.br/centrodametropole/upload/aaa/925-eduardo_2014_set_0011-5258-dados-57-03-0675.pdf. Acesso em 9.nov.2015.

MARTINS, S. R. O. A vivência territorial e suas manifestações lingüísticas e literárias: anotações de aula. Três Lagoas, UFMS, 2015.

PRADO, T. C. S. Segregação residencial por índices de dissimilaridade, isolamento e exposição, com indicador renda, no espaço urbano de Santa Maria – RS, por geotecnologias. Dissertação (Mestrado). Santa Maria – RS, Universidade Federal de Santa Maria, 2012. Disponível em http://cascavel.ufsm.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5045. Acesso em 9.nov.2015.

RAFESTIN, C. Por uma geografia do poder. Trad. Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993.

RESENDE, H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Tunds, S.A. & Costa, N. Rosário. Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1987.

SCHMID, C. A teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre: em direção a uma dialética tridimensional. Trad. Marta I. M. Marques; Marcelo Barreto. In: GEOUSP – espaço e tempo, São Paulo, n. 32, PP. 89-109, 2012.

SECOVI. Estudo do mercado imobiliário por distritos – Vila Leopoldina. Arquivo disponível em http://www.secovi.com.br/files/Arquivos/vilaleopoldina-2012.pdf. Acesso em 9.nov.2015.

 

 

 

 



[1] O índice de dissimilaridade é uma medida da uniformidade demográfica com que dois grupos são distribuídos através das áreas geográficas de componentes que compõem uma área maior. A pontuação do índice também pode ser interpretado como a percentagem de um dos dois grupos incluídos no cálculo de que teria que se mover para diferentes áreas geográficas, a fim de produzir uma distribuição que coincide com a da área maior. O índice de dissimilaridade pode ser usado como uma medida de segregação. Centro de estudos da população da Universidade de Michigan, disponível em http://enceladus.isr.umich.edu/race/calculate.html.

[2] Edição eletrônica de 4 de abril de 2015, disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/02/

politica/1427938647_756022.html. Acesso em 20.nov.2015.

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