INTERSECÇÕES
DA HISTÓRIA NA ESTÓRIA EM ROA BASTOS
Alexandre Luís Gonzaga - UEMS
Neste
ensaio pretendemos fazer uma leitura do texto “Em frente à frente Argentina” de
Augusto Roa Bastos, publicado como capítulo da obra “O Livro da Guerra Grande
(2002), explorando postulados teóricos sobre o papel da memória e do
esquecimento na composição literária, e sobre as intersecções entre literatura
e história.
O
fio condutor do texto perpassa os acontecimentos da guerra, os fatos históricos
reconstituídos em uma revisão do passado de um período específico da Guerra do
Paraguai.
O
fato histórico oficial dá conta de uma batalha travada em 22 de setembro de
1866, de um lado o exército paraguaio, entrincheirado, do outro as forças
militares brasileiras e argentinas, sob o comando do General Bartolomeu Mitre e
do Almirante Tamandaré. Nesta batalha não houve representação militar uruguaia.
O saldo da batalha foi positivo para o lado paraguaio, muito embora contassem
com um efetivo militar inferior.
Assim,
é no período imediatamente após esta batalha, a batalha de Curupayti, que o
autor começa a narrativa.
O
narrador não é explícito, a narrativa se desenvolve na forma de um diálogo
entre dois personagens, o General Bartolomeu Mitre e um oficial ferido na
batalha, Cándido Lopez, pintor destro, mas que em decorrência de uma explosão
teve sua mão direita amputada. Esse fato leva-o a aprender a pintar à sinistra.
O
diálogo entre os personagens se dá de forma contínua, sem parágrafos que
marquem a passagem de turno e assim possibilitar a imediata identificação de
quem fala. Esse modo narrativo é uma tendência da vanguarda literária latina
americana que causa um efeito de produção de memória.
O
discurso direto é permanente, transparecendo a independência dos personagens e
indiretamente categorizando o narrador como implícito. Os personagens se
revelam à medida que conversam sobre o que pensam a respeito do ocorrido na
batalha e dos motivos que levaram à guerra, ao mesmo tempo em conversam o
general começa a traduzir o Inferno de
Dante Alighieri[1]. Nesse
sentido, o narrador do texto de Roa Bastos é um narrador que é também um
personagem, segundo a teoria do narrador de Todorov (apud ZILBERMAN, 2008), ou
ainda o narrador autodiegético de Genette (ibidem,
2008). Na obra, então, tem-se dois narradores que dialogam na voz dos
personagens ou, na visão de Roland Barthes[2],
seria apenas um recitador que domina o código narrativo e o faz nas duas vozes,
assim, o autor-narrador é suprimido em nome da história. O que o texto de Roa
Bastos propõe é um autor implícito como o diz Chiappini, mas que se opõe ao
mesmo tempo:
O autor implícito é uma imagem do
autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do narrador,
das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e
psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos
ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na história (2002,
p. 19).
Essa
oposição de que se fala se dá em alguns níveis ou instâncias como a dos
acontecimentos, do tempo e espaço. Estes são predeterminados pela história e ao
Roa Bastos-narrador resta preencher um espaço vazio num tempo determinado e
dentro de um evento que, em um primeiro momento, a história leva a crer que é mais
importante saber sobre.
A
narrativa vai além de preencher um vácuo na história, propõe discutir intersecções
como história e literatura, memória e esquecimento, o real e o imaginado na
história.
No
texto de Roa Bastos pode-se observar um paralelo com o descrito em Mímesis no
capítulo “O príncipe cansado”, onde Auerbach nos diz em dado momento que
Henrique IV revela a seu servo a vontade de tomar cerveja fraca em meio a uma
conversa sobre coisas cotidianas., o então presidente argentino General Mitre
trava um extenso diálogo com Cándido Lopez, tenente ferido em batalha, e em
decorrência do ferimento ganha a alcunha de “maneta de Curupayti”. No diálogo
entre os personagens vemos uma mistura de assuntos cotidianos com assuntos do
alto comando e os destinos da guerra. O estranhamento no contato entre pontos
de vista distintos, cada um advindo de um estrato social, vai se tornando mais
evidente à medida que cada um expressa sua opinião sobre a guerra e sobre a
representação pictórica que o tenente pintor faz dela, de um lado e de outro, a
tradução do Inferno de Dante que o
General empreende.
O
diálogo entre os personagens pode ser visto também como metáfora que guarda em
essência a marca do conflito eterno entre o civilizado e o bárbaro, entre o
colonialista e o colonizado. As relações entre os dois níveis sociais estranhos
entre si ressaltam mais o ponto de vista do dominador do que propriamente uma
tradução do desejo de conhecimento mútuo.
A primeira intersecção, história e
literatura
O
conceito de história é questionado porque de acordo com Le Goff (1990) pode
significar as ações realizadas pelos homens. Assim, o objeto de procura é o que
foi realizado pelos homens. Le Goff ainda nos diz que a história seria como uma
narração. Nesse sentido, ela pode ser verdadeira ou falsa mesmo baseada na
realidade histórica. Por outro lado, a história como uma narração pode ser
puramente imaginária, como uma fábula, o que nos levaria já à próxima
intersecção.
As
semelhanças que ligam a literatura e a história podem ser interpretadas de
diversas maneiras. Pode-se ressaltar que a produção textual pode ser vista como
fato histórico, significando que há uma aproximação histórica dos textos.
No
passado, a história era domínio da literatura e era estudada não como
disciplina, mas como fato histórico, como gênero literário. Furet (apud HOOPER, 2007) nos diz que uma
característica da história como gênero literário é precisamente excluir
qualquer referência ao aparelho crítico, mas que apresenta uma lição de moral,
uma forma regular e ornamentada. Furet (op. cit) continua dizendo que a
história perdeu sua rigidez do conteúdo, mas conserva todas as regras estéticas
e morais, como um trabalho de escritor.
Thierry
(apud HOOPER, 2007, p. 47) assumiu
uma posição próxima aos literatos quando defendeu que a história não
correspondia necessariamente ao passado, mas era uma construção literária de um
escritor politicamente engajado. Aos poucos a história vai se deslocando para
assumir posição ao lado da ciência. Afastar-se da literatura significou para a
história, segundo Hooper, o primeiro movimento para integrar-se junto ao rol de
disciplinas que formam um realismo não mais formal, mas puramente real.
A segunda intersecção, o real e o
imaginado
A
imaginação histórica é definida e limitada ao preenchimento das lacunas
formadas ao longo da inscrição histórica. Para Hooper, o conceito de imaginação
histórica possui uma conotação negativa, indicando as impossibilidades e
limites da pesquisa factual. Lançar novas interpretações só seria possível caso
algum novo documento ou informação fosse descoberto.
O
General Mitre inicia a tradução do Inferno
de Dante Alighieri ao mesmo tempo em que o Tenente López pinta as batalhas das
quais participou. É nesse momento em que o autor, através da voz dos
personagens problematiza questões em torno do ato de traduzir um texto.
Quem diz tradução diz traição,
dom Mitre. Talvez, meu ladino paladino. Em todo caso, é o mesmo ofício que o
seu. A imaginação cria por instinto. [...] em plena refrega eu o vejo fitando,
do alto, como os homens se trançam em combate, como as lanças atravessam seus
ventres [...]. Você vai guardando essas imagens em sua cabeça insolada e
depois, de noite, no sossego, começa sua guerra com os traços e destroços. Você
por acaso pensa que essas imagens são fiéis à matança? A memória do momento é a
mais enganosa. Nunca estamos no tempo presente, salvo na memória que se torna
copiosa, como a sua faz cópias. Toda a história contemporânea é uma fraude.
Giorgio
Agamben acredita que haja uma relação secreta entre o gesto e a fotografia, do
mesmo modo, há uma relação entre o olhar do pintor e o que este reproduz na
tela. Em face de um conhecimento prévio e robusto sobre as técnicas de produção
de imagens com o daguerreotipo, Cándido López se preparava para registrar na
memória as cenas de guerra que seriam depois registradas. Assim surgiram as
várias telas pintadas com motivos daquela guerra.
O
filósofo D. Hume apresenta seu conceito que faz distinção entre as ideias da
memória e as ideias da imaginação. As ideias da memória se referem a eventos
passados na ordem e na forma em que ocorreram, de modo oposto, as ideias da
imaginação formam-se a partir de associação livre entre eventos e impressões
passadas. Assim, reconhecer quando uma imagem mental faz parte da memória
permite vivenciar a repetição de impressões associadas à imagem. A imaginação é
chamada por Hume de falsa memória, e a mente às vezes não consegue diferir
completamente uma imagem da outra. Como a memória para Hume está estreitamente
relacionada às impressões que elas causam quem vem à mente, e essas mesmas
impressões servem de base ao processo de imaginação e diferença entre uma e
outra está também na liberdade que a memória não tem, situação oposta à imaginação.
E desta liberdade de que o General Mitre fala a Cándido López, se no fato
histórico as tropas recuaram, General Mitre diz que é só fazê-las avançar na
pintura. Ou seja, inventar ou inverter o fato não limitado à memória, mas
livremente associado à imaginação.
Oliver
Johnson (1987), estudioso da filosofia humeneana, exemplifica a distinção da
memória com um mentiroso que acredita nas próprias mentiras, as ideias “da
imaginação” são fortes o suficiente para serem confundidas com ideias de
memória. Assim, nesse caso as ideias de um mentiroso seriam ideias de memória
através de uma simulação já que a memória não precisa necessariamente ter
correspondência com uma realidade passada. O conceito de Johnson nos ajuda no
sentido de que bastaria por decisão do autor da imagem, Cándido López, mudar a
própria memória e realizar nova pintura, desde que não se leve em conta a
questão ética.
A terceira intersecção, memória e
esquecimento
A
forma como as falas de cada personagem se dispõem em cada parágrafo no texto remetem
à uma forma de rememorar fatos antigos, as falas se confundem e não oferecem a
certeza de quem proferiu determinada fala.
Além
da dimensão individual, Chauí (2008) fala da dimensão coletiva ou social,
aquela gravada nos museus, monumentos e relatórios. Outra característica a ser
ressaltada na dimensão da memória é o sentimento do tempo ou da percepção de
algo que fica no passado cada vez mais distante, portanto sujeito a variações
de um indivíduo a outro.
Subjacente
ao conceito de memória, componente sobre o qual se constrói a identidade tanto
a nível individual quanto coletiva, está o esquecimento. Em outras palavras, o
esquecimento é parte constituinte da memória, e quando está presente sua ação
resulta na impossibilidade de recordação.
Santo
Agostinho lançou hipóteses acerca da relação memória-olvido:
Eu, Senhor, cogito este problema,
trabalho em mim mesmo, transformei-me numa terra de dificuldades e de suor
copioso. Agora, já não escalo as regiões do firmamento; não meço as distâncias
dos astros; não procuro as leis do equilíbrio da terra; sou eu que me lembro,
eu, o meu espírito (ego animus). Não é de se admirar que esteja longe de mim
tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? Oh!
Nem sequer chego a conhecer a força da minha memória, sem a qual não poderia
dizer mesmo eu! Que direi eu, pois, quando tenho certeza de que me lembro do
esquecimento? Poderei afirmar que não existe na minha memória, para que o não
esqueça (AGOSTINHO, 1973, p. 16)
A
memória em Santo Agostinho é uma faculdade que propicia o entendimento, e
através deste é que ocorre a identificação. Assim, a memória é o caminho para o
sujeito entender a si próprio e o mundo à sua volta. Nesse sentido, a memória,
como atividade reflexiva, está relacionada à imaginação e, por conseguinte, às
imagens que vistas de uma perspectiva saussureana ligam-se à linguagem.
Orlandi
(in ACHARD et. al., 1999) considera
que a memória é feita de esquecimentos e silêncios.
Cándido
López resiste à intenção do General de manipular as representações pictóricas
da guerra pelo extermínio constante dos traços originais, pelo esquecimento do
original, o fenômeno da representação do imaginado combinado com o visto e
lembrado transforma-se no simulacro que o General deseja, a construção de um
mito.
A estética das representações
O
General Mitre usa pronomes os mais diversos para falar com o Tenente-pintor
López, dentre tantos destacamos aqui o pronome “pré-rafaelita” que o General
usa quando está a falar sobre o pintor reproduzir pictoricamente uma farsa.
Os
pré-rafaelitas eram um grupo de artistas ingleses reunidos em 1848 dedicados
principalmente à pintura. Este grupo desejava devolver à arte a pureza e a
honestidade que acreditavam existir na arte medieval gótica e que se perdeu com
mestres do renascimento como Rafael. Parte do grupo ligou-se aos temas
medievais inspirados em Dante Alighieri.
Ao
perguntar se o pintor retratou o fuzilamento do brigadeiro Aranda, este responde
como deveria retratar essa farsa, chamou-a de “uma pantomima bastarda”. Ante a
essa resposta, General Mitre pergunta se o pintor foi pego pela “epidemia
rafaelita”, por querer ser fiel à arte e não representar uma farsa. A isso o
General Mitre responde que “Via-se algo neogótico nessas suas figuras
enfileiradas, em suas legiões quase infernais e nesses céus plácidos sobre batalhas
sangrentas [...] de seu inferno saem seus céus angelicais”.
Assim,
ante a argumentação de Mitre e a contra argumentação de Cándido López se expõe
toda uma problematização da arte pictórica. De um lado o General não acredita
que o pintor consegue ser fiel, mas que não haveria algo mais teatral que uma
mente mentirosa. De outro lado Cándido López argumenta que faz esboços a partir
de fatos concretos, desenhando a história como lhe fora ensinado por seu
mestre, não podendo, assim, retratar um embuste enganador, uma “impostura”.
De
um ponto de vista agambeano, as representações da guerra contêm um indício
histórico que não se pode esquecer e graças ao poder do gesto do pintor, o
indício de que se fala remete a outro tempo, mais atual e urgente do que aquele
tempo cronológico. Os sujeitos representados nos quadros, sem rostos, só ação, mesmo
hoje esquecidos, mesmo que seus nomes não apareçam na história, ainda sim a
representação pictórica do gesto exige uma memória, uma negação ao
esquecimento. Nesse sentido, a pintura da guerra é mais que uma imagem; é o
lugar onde se capturou um fragmento do real entre o sensível e o inteligível.
A
metáfora da guerra-inferno, ou do inferno como guerra se impõe quando os
personagens dialogam sobre a tradução da obra de Dante e falam também sobre o
palco de algumas batalhas, o Gran Chaco. A região do Gran Chaco compreende
parte dos territórios paraguaio, brasileiro, argentino e boliviano. É uma
planície com floresta densa cujas temperaturas médias estão entre as mais altas
do continente sul-americano e na época das chuvas o terreno fica alagadiço.
Assim, a pergunta retórica do general adquire um sentido específico: “Quem pode
se salvar no inferno do Gran Chaco?”. E complementa com a estrofe de Dante “Lasciate ogne speranza, voi ch’entrate”.
Pouco
a pouco as representações pictórico-textuais do inferno propõem uma construção
inexorável de que o código linguístico e o código visual (semiótico) se
encontram intimamente ligados.
Ainda
nas metáforas podemos observar abaixo uma extensa lista de pronomes com os
quais o General Mitre trata seu interlocutor, e.g., pintor, mestre, cândido,
segundo tenente maneta de Curupayti, cavalariço, descarado ladrão de gado,
mestre manco, entre outros.
Quando
se dirige ao seu interlocutor, o General utiliza uma variedade de pronomes de
tratamento indo de uma linguagem mais íntima e informal, com o uso de
axiônimos, ao mais formal e distante, com o uso de títulos formais. Para isto,
na voz do personagem, o narrador utiliza um conjunto de substantivos que
possuem a função não só de substituir o nome do interlocutário relacionado ao
discurso, indica uma determinada fluidez na determinação da identidade do interlocutário
pelos olhos do General.
Blikstein (SOUZA et.
al. 1981) nos diz que o nome é um instrumento discriminatório da realidade
(ousía para Platão), e que a análise
(ou discriminação) da ousía vai além
realidade, mas inclui também a substância. Em outras palavras, a análise da ousía de Platão indica uma realidade
filtrada pela experiência e cognição. Blikstein ainda nos diz que com o papel
discriminatório do signo, a língua nos oferece um recorte da realidade, a
partir do qual as coisas passam a “existir”, e sobre o nomear as coisas cita:
O nome é a essência das coisas,
do objeto denominado. Sua exclusão extingue a coisa. Nada pode existir sem nome
porque o nome é a forma e a substância vital. No plano utilitário as coisas só
existem pelo nome (CÂMARA CASCUDO, apud BLIKSTEIN, 1981, p. 30)
Aos
olhos do General, a identidade de Cándido López é fluída e polissêmica, não é
fixa. De acordo com o assunto que estão a tratar o General vê seu interlocutor
de modo diferente. Os pronomes de tratamento são usados de modo a suscitar uma
nova interpretação da identidade do personagem Cándido López.
Campelo
(2007) postula que a classe nominal é a classe geratriz de todas as demais e aparece
a partir de experiências sensoriais cujo ponto de partida é o homem, tanto de
um ponto de vista físico quanto psicológico, em interação com o meio em que se
insere. Assim, os nomes prestam-se a identificar os referentes percebidos pelo
homem que continuamente refina sua percepção na direção de uma abstração cada
vez maior. Este processo resulta numa matriz nominal constantemente revivida e
renovada a cada nova geração linguística.
Ainda
segundo Campelo (op. cit.), as nomeações de modo geral precedem as referências
de nomes destinados a identificar os seres humanos. A metáfora lexical como
efeito de designar com referentes não humanos o homem, faz com que experiências
de mundo tornem-se fonte motivadora de antropônimos, e podem se basear em
eventos assim como em referentes. Deste modo o General demonstra por um lado
extensa formação cultural, de outro o uso de variados modos de tratamento não
se restringem ao respeito ou admiração. Percebe-se ora uma intenção de bajular,
ora certo tom pejorativo e irônico de tratar o interlocutor. Exemplificamos com
dois títulos utilizados que são “insigne mestre”, onde o General trata seu
interlocutor elogiosamente chamando-o de notável e célebre mestre e “mestre amestrado
na arte da sofística”, neste segundo caso temos um título de alguém que seria
um mestre treinado, doutrinado em usar sua arte como forma de enganar seus
ouvintes ou seguidores.
Percebe-se,
então, que o uso dos pronomes pelo General indica uma relação reversível entre
o indivíduo e a imagem que se tem deste mesmo indivíduo em seu sentido
existencial.
A
questão que se impõe é como significar os atributos dados pelo General ao seu
interlocutário.
Bueno
(1960, p. 43) diz que um dos caminhos para interpretar o significado das
palavras é olhar para a própria palavra e examinar sua afetividade sonora. Para
este autor há vocábulos sonoramente agradáveis, brilhantes a que correspondem
significados também agradáveis e brilhantes, por outro lado há vocábulos com
sons escuros e desagradáveis que têm significados funestos e repulsivos. A
vogal tônica em alguns atributos dados à Cândido Lopez correspondem ao que diz
Bueno, “maneta” é um termo que, segundo Bueno, remete ao receio, medo e no caso
ao que não é plenamente capaz.
Esta
é uma especulação evidentemente subjetiva porque há que se encontrar vocábulos
que desmintam o receio, medo e incerteza da sílaba baseada em “ê”.
Alguns
pronomes são seguidos pelo seu oposto como é o caso de “vulpino” cujo
significado se refere às raposas, à astúcia e esperteza, claramente se opondo à
“incauto”, aquele que não tem cautela, descuidado. Todos os pronomes podem ser
vistos de um ponto de vista negativo e pejorativo. Nesse sentido tem-se um
efeito de encadeamento onde de um atributo a outro numa sucessão de
significados que ora remetem à condição física de Cândido Lopes, ao posto militar
ocupado, e às características de caráter que o General acredita que Cândido
Lopes tenha.
Considerações finais
Augusto
Roa Bastos trouxe para a história a estória de um diálogo profundo e
esclarecedor. De um lado o General Bartolomé Mitre, comandante do exército
argentino alçado a presidente; de outro Cándido López, tenente que atuou na
batalha de Curupaytí, onde teve sua mão direita amputada, o que o levou a aprender
a pintar com a mão esquerda.
Roa
Bastos preenche uma lacuna na história mostrando quando teria se dado o início
da tradução argentina da Divina Comédia de Dante Alighieri. As pinturas de
Cándido López ilustram diversas batalhas ocorridas durante a Guerra Grande,
comumente chamada de guerra do Paraguai.
O
texto que motivou este ensaio é na verdade metade do texto que faz parte da
obra “O livro da Guerra Grande”, com participação de quatro outros escritores
cuja temática abordada é a mesma, a guerra do Paraguai. Instaura através do
texto uma discussão em torno do fazer e do agir na arte, sendo o fazer uma
dimensão ou determinação do modo de agir.
A
pista que temos para dizer que Roa Bastos discute numa visão mais ampliada como
se dá a relação de subordinação do fazer ao agir está na distinção entre ética
e estética. O personagem Cándido López tem uma preocupação em retratar com
fidelidade o que vê, logo subordina seu fazer a um agir moralmente, e se opõe
ao fazer da arte que leve a um engano naquilo que é próprio da arte, ou seja,
conduzir o homem na busca do bem e da beleza plenas. Faintanin (2007) nos
auxilia ao dizer que “embora não se chegue diretamente ao bem pela obra de
arte, porque ela se ordena ao que é belo e útil, ela muito serve para
intuí-lo”. Poderíamos acreditar que uma obra que fosse capaz de promover
sentimentos bons para o caráter do homem e de repulsa às carnificinas da guerra
tornaria o artista moralmente bom, mas isso não é verdadeiro. A arte revelaria
tão somente que o artista é hábil e talentoso para manifestar o belo.
Assim,
através de dualidades Roa Bastos traz a tona discussões sobre a constituição das
artes pictórica e escrita e seus impasses constitutivos.
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