TOLERÂNCIA SOCIAL E MACHISMO: marcas ideológicas
no discurso coletivo
Alexandre
Luís Gonzaga[1]
RESUMO:
Neste trabalho analisamos discursos sobre a repercussão da publicação de dados
de uma Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – sobre a
tolerância social à violência contra a mulher. O IPEA divulgou entre os
resultados da pesquisa que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo
merecem ser atacadas” e que “se as mulheres soubessem como se comportar,
haveria menos estupros”. Pode-se notar que há na sociedade o que podemos chamar
de “bastião de resistência”, que inclui homens e mulheres que concordam com as
assertivas mencionadas e que colaboram para compor um quadro de relações
dialéticas e contraditórias, tendo por um lado nítidos avanços na condição
emancipatória da mulher na sociedade, e por outro o conservadorismo. Abordamos
os tipos de ideologia que permeiam o fazer jurídico e que mostramos o machismo
como elemento ideológico que influencia grandemente as decisões tomadas por
magistrados. A metodologia segue os moldes de pesquisa social crítica, proposta
pelo viés teórico da Análise do Discurso que promove investigações textuais
orientadas, observando as relações de poder, linguagem e dominação. Assim,
apoiamo-nos teoricamente em Pêcheux, Foucault, Althusser, Lyra e Montoro e
Wolkmer.
Palavras-Chave:.discurso
jurídico, analise do discurso, machismo, mudança social
ABSTRACT: In this paper we analyze the repercussions of the publication
of data from a Research by the Institute of Applied Economic Research (IPEA) on
the social tolerance of violence against women. The IPEA reported among the
survey results that "women wearing clothes that show the body deserve to
be attacked" and that "if women knew how to behave, there would be
less rape." It may be noted that there is in society what we might call a
"bastion of resistance," which includes men and women who agree with
the aforementioned assertions and who collaborate to form a framework of
dialectical and contradictory relations, having, on the one hand, clear
advances in the emancipatory condition of women in society, and on the other,
conservatism. We approach the types of ideology that permeate legal making and
that we show machismo as an ideological element that greatly influences
decisions made by magistrates. The methodology follows the models of critical
social research, proposed by the theoretical bias of Discourse Analysis that
promotes oriented textual investigations, observing the relations of power,
language and domination. Thus, we theoretically support Pêcheux, Foucault, Althusser,
Lyra, and Montoro and Wolkmer.
Keywords : legal discourse; discourse analyse;
chauvinism; social change;.
A proposta deste estudo
é buscar compreender a ação que a ideologia exerce sobre os discursos e,
consequentemente, sobre as decisões jurídicas. Juízes-desembargadores tecem
considerações sobre seus votos construídos mediante uma interpelação em sujeito
que se dá ideologicamente pela sua formação discursiva. Assim, o discurso de um
juiz-desembargador ocupa uma posição no espaço e no tempo histórico em relação
a outros discursos ou em relação aos discursos do Outro.
A noção de ideologia ou a definição discursiva
de ideologia segundo Orlandi “é a condição para a constituição do sujeito e dos
sentidos” (1999, p. 46). Assim, diante de um objeto simbólico, o sujeito
precisa interpretá-lo para entender seu sentido. A busca de um sentido mediante
interpretação não se dá sem a presença da ideologia.
A ideologia constitui e padroniza a ação do
homem como ator social consciente dentro de uma noção às vezes intangível do
mundo. A ideologia opera de modo a dirigir o ser humano como sujeito, ou dentro
de um conceito althusseriano, a ideologia interpela o homem como sujeito. Como
conceito, ideologia é muito discutida na filosofia moderna, mas não se
restringe àquela área, pois que é estudada e reestudada continuamente no mundo
acadêmico. Há um sem número de sentidos atribuídos ao termo desde o primeiro
registro de uso denotando a complexidade que envolve as teorizações sobre sua
concepção com diversas interpretações. O vasto conjunto de abordagens visto
como um todo por um lado indica que ainda há grande celeuma no meio acadêmico a
respeito, e, por outro, mostra que abordar esse tema numa investigação é
arriscar-se a andar em terreno movediço e nebuloso. Para Guareschi (in STREY et al., 2012, p. 89) “talvez não exista conceito mais complexo,
escorregadio e sujeito a equívocos, [...], do que o de ideologia”.
Pretendemos explorar a ideologia sob um aspecto
formativo do sujeito humano, pouco ou nada relacionando com processos de
formação de personalidade, sendo a subjetividade aspecto diferente com
características próprias. Assim, para se discutir ideologia, sugere-se antes
aqui que os efeitos da ideologia, facilmente observados no âmbito social,
individualmente podem não ser tão claros, além de não se poderem ignorar outros
fatores intervenientes como personalidade ou estrutura de caráter.
Posto então que se observará uma relação de
dualidade interpelação-reconhecimento, consequência da formação ideológica,
seja ela opressiva ou emancipatória, fato é que a ideologia envolve processos
de sujeição e qualificação.
Assim, o processo de assujeitamento e
subjetivação abre espaço para uma discussão dialética, no sentido de que ao se
propor uma análise discursiva em um texto jurídico, se buscará transcender o
caráter dialético indicado pela oposição da interpretação do termo “sujeito”.
Segundo Thernborn (1980) a palavra “sujeito” (subject) evoca o sentido de súdito (como em ser súdito de um rei X
ou da ordem social Y) onde o indivíduo está subjugado a uma força particular
maior, e “o sujeito (subject) da
história”, o ser realizador de alguma coisa.
Iniciamos as considerações com a ideologia alemã
não porque anteriormente não houvesse ideologias, mas porque quando Marx, no
século XIX, escreve o livro “A Ideologia Alemã”, afirma o pensador nesta obra
que existe uma força invisível capaz de determinar as ações individuais e sociais,
força cuja ação leva o indivíduo a acreditar que pensa por si só, quando na
verdade, seus desejos e ideias procedem desse poder que o faz pensar de acordo
com o que ele (o poder) quer que o indivíduo pense. A essa força que age no
âmbito social, Marx chamou de ideologia.
Assim, tece-se considerações sobre o
materialismo histórico e o marxismo como princípio da discussão sobre as
ideologias que permeiam o Direito como fazer jurídico, com a finalidade de
tentar tornar explícito como se dá a formação discursiva dentro dessa área do
conhecimento.
Marx não se dirige ao Direito em sua obra, o
pensador foi um economista clássico atuando no plano do pensamento teórico da
economia. Estabelece em seus princípios aquilo que acreditava ser adequado para
explicar a sociedade que via à sua volta. O que se pode observar é que houve
uma ressignificação dos princípios marxistas usados para explicar o Estado em relação
ao Direito como expressão social, posto que o Direito é um fenômeno social.
A ideologia vista a partir do marxismo é
concebida como resultado de uma sociedade estruturada em classes, não tendo sua
origem na sociedade capitalista, mas nela se constituindo em forma mais
elaborada. Na concepção marxista, a ideologia surge após a divisão do trabalho,
entre o intelectual e o material.
Para Marx, a divisão do trabalho também dividiu
o homem, pois que a partir daí viu-se a separação dos homens nas diversas
sociedades através da história. Essa configuração social onde sedividiram os homens
pensantes dos homens executores resultou na possibilidade de apropriação eficaz
do controle do trabalho intelectual e dos meios de produção em detrimento
daqueles a quem sobra somente a execução do trabalho.
O desdobramento dos conceitos marxistas resulta
na proposição final de que a ideologia surge quando se estabelece relações
sociais desiguais, o que provoca o aparecimento de condições que legitimam a
ideologia, pois que se estabelece o processo de alienação.
Para Marilena Chauí (1984), é preciso entender o
sentido de produção social da ideologia, a autora demonstra a proposição assim:
a) se inicia como um conjunto sistemático de
ideias de uma classe em ascensão cuidando para que os interesses desta legitime
a representação de todos os interesses da sociedade por ela. Neste momento se
está assim legitimando a luta da nova classe pelo poder.
b) no segundo momento se espraia no senso comum,
ou seja, passa a se popularizar, passa a ser um conjunto de ideias e conceitos
aceitos por todos que são contrários à dominação existente. Neste momento as
ideias e valores da classe emergente são interiorizados pela consciência de
todos os membros não dominantes da sociedade.
c) uma vez assim sedimentada a ideologia se
mantém, mesmo após a chegada da nova classe ao poder, que é então a classe
dominante, os interesses de todos que eram os não dominantes passam a ser
negados pela realidade da nova dominação.
Assim, quando um
segmento da sociedade se estabelece de modo hegemônico, aparece aí uma
ideologia dominante, que reflete o poder material e espiritual desta classe. Em
outras palavras, a ideologia como pensamento social dominante é tão somente a
expressão das relações materiais dominantes sob a forma de ideias de seu
domínio. Essas ideias agem de modo a reproduzir as condições de produção.
A disposição de se sujeitar à ideologia
dominante, de acordo com Althusser (1974, p. 14), deve estar de algum modo
dentro da consciência dos agentes de produção, ou estes agentes devem estar
“imbuídos[2]” desta
ideologia para poderem desempenhar socialmente sua função. De fato, o agente
althusseriano, tanto o proletário quanto o capitalista burguês, não tem plena
consciência de estar interpelado pela ideologia, esta está impregnada,
entranhada em tal grau no seu modus
pensandi que o impede de ter um olhar de estranhamento ou distanciamento ou
ainda consciência de si enquanto não houver alguma ruptura.
As formações ideológicas têm relação direta com
a divisão de classes tendo uma classe favorecida em detrimento de outra,
segundo a reprodução da sua sujeição à ideologia dominante. Ressaltamos,
entretanto que essa dominação não é permanente visto que as contradições da
estrutura acabam minando a base do poder, abrindo espaço às contestações da
base oprimida para a ideologia oficial. Isso se dá quando a crença (a natureza
das crenças favorece a cristalização de uma ideologia) numa ideologia arrefece,
quando uma classe toma consciência das deformações sociais provocadas pela
classe dominante. Esta tomada de consciência é favorecida quando as
contradições da estrutura social se agravam e a crise que sobrevém torna
evidente o contraste entre ideologia e a realidade. Essa conscientização aponta
os vícios do sistema e daí surge um pensamento atualizado capaz de perceber as
falhas e buracos na estrutura social.
Deve-se ressaltar que os indivíduos que
pertencem à classe dominante têm consciência de seu domínio. Segundo Chauí
(2001), além da preocupação com a dominação Marx critica severamente a vertente
ideológica hegeliana com sua análise das condições materiais da sociedade real,
diferente, portanto, daquela produzida pelas abstrações do idealismo. O idealismo
para Marx era a inversão através da qual o homem cria ideias, as representações
da realidade, mas ao mergulhar nesse cogitum
afasta-se do real. Entretanto essa inversão é aprofundada pelas desigualdades
sociais que aprofundam a inversão, formando um ciclo que desencadeia uma crise
de representatividade do Estado Moderno. O que se verá é que este ciclo se
instaurou quando a burguesia, depois de conquistar o poder econômico, buscou o
poder político contestando a aristocracia feudal. Isso se deu com a bandeira
ideológica do direito natural, e, tendo conseguido o que pretendia, trocou de
doutrina, passando então, segundo Lyra (1982) a defender o positivismo e a
ordem vigente. O mesmo se deu do ponto de vista jurídico, com o que Lyra (op.
cit.) denomina jurisnaturalismo (ideologia do direito natural) e que “embora
seja uma posição antiga, é o positivismo que hoje predomina entre os juristas
do nosso tempo”.
Marx contribuiu grandemente para o sentido
ideológico do Direito através de sua teoria epistemológica. Não se pretende
incorrer no risco da expressão “direito como ideologia”, pois que seria essa
uma redução que traria em si diversos equívocos. Um desses equívocos é que,
independentemente de ser definida como “consciência de classe” ou “falsa
consciência” como resultado do processo de alienação do sujeito, a ideologia se
expressa, via de regra, pelas relações entre valores, atitudes, crenças e
assemelhados. E estes permeiam o pensamento jurídico, daí incorre-se no risco
reducionista de ver o direito como ideologia, como integrante da superestrutura
social.
Bourdieu afirma que “a autonomia absoluta da
forma jurídica em relação ao mundo social, e do instrumentalismo, [...] concebe o Direito como um reflexo ou um utensílio ao serviço dos dominantes” (2004, p. 209, grifos do
autor). Vê-se que Bourdieu concebe o Direito (ou ciência jurídica) de modo
entrópico, como sendo um “sistema fechado e autônomo cujo desenvolvimento só
pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna”. Ainda de acordo com
aquele autor, a ideologia profissional corporativa sob a forma de doutrina faz
ver no Direito e na jurisprudência um “reflexo direto” das relações de força
existentes onde os interesses dominantes prevalecem.
Assim, como invenção humana, logo também um
fruto da linguagem, o Direito é um fenômeno essencialmente ideológico. E como
tal é permeado por ideologias individuais e de grupos que lhe conferem sentido
e que ora opõem-se entre si dialeticamente. Neste embate entre as forças
ideológicas que pressionam o fazer do Direito, ocorrem distorções e nesse
sentido, Lyra (1982) nos diz que “o
caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o
homem pensa sobre o direito, mas do que juridicamente ele faz”.
Quando se coloca a proposta de problematizar o
fenômeno ideológico no Direito, acredita-se que a discussão deve inicialmente
abordar parâmetros conceituais que diferenciem uma categoria científica de uma
prática ideológica. Wolkmer nos diz que:
[...]
a Ciência do Direito não consegue superar sua própria contradição, pois
enquanto Ciência dogmática torna-se
também ideologia da ocultação. Esse caráter ideológico da Ciência Jurídica se
prende a asserção de que está comprometida com uma concepção ilusória de mundo
que emerge das relações concretas e antagônicas
do social. O Direito é a projeção normativa que instrumentaliza os
princípios ideológicos (certeza, segurança, completude) e as formas de controle
do poder de um determinado grupo social. [...] Todo Direito é ideológico,
porque na sua reivindicação desconhece sempre seu condicionamento social e
histórico. (2003, p. 155-156)
Segundo esta visão do Direito, mesmo áreas
vistas como neutras da Ciência não estão livres de influências ideológicas.
Wolkmer ainda nos diz que o Direito é um fenômeno social, histórico e concreto
que só pode ser entendido analisando-se a realidade social e o processo
histórico onde se manifesta. Nesse sentido, o Direito vai refletir como sistema
de regras, os valores vigentes e as vontades do grupo social dominante. Wolkmer
(2003, p.156) defende que quando um grupo ascende ao poder e de fato o exerce
(definido como controle efetivo sobre determinado território), sua ideologia
nada mais será que a própria lei.
Visto sob a concepção histórica ocidental, o
Direito possui algumas divisões ideológicas identificadas com correntes bem
diversas.
O jusnaturalismo, ou Direito Natural, é uma
corrente ideológica que não vê o Direito como fruto das relações sociais,
independe da vontade humana e existe antes do homem. Assim, o Direito Natural
tem caráter universal, imutável e inviolável. (MONTORO, 2011, p. 303). O
juspositivismo é a corrente ideológica que defende a imposição de leis, pois
estas são o produto da ação humana (ou de natureza empírico-cultural), seu
pressuposto básico é o próprio ordenamento positivo com a existência de leis
formais.
Pode-se identificar também duas correntes
ideológicas que subjazem àquela que rege o Direito positivo, também chamada de
doutrina do Direito. Chamamos de ideologia subjacente porque acreditamos que
dentro do Direito há diversos entendimentos sobre um mesmo fato, se assim não o
fosse não haveria necessidade de um recurso ser julgado, por exemplo, por três
desembargadores. As duas ideologias seriam uma que tem forma mais estatutária,
voltada para o que diz a lei ipsis
literis. A outra seria um em si mesmo reflexivo, no sentido de que se apoia
na lei para defender um ponto de vista pessoal não necessariamente partilhado
pelos pares, mas apoiado na moral pessoal. E, de acordo com o conceito de
Bourdieu (2004, p. 48), como essas ideologias não aparecem e não se assumem
como tal, é deste desconhecimento que lhe vem a eficácia simbólica. Não se pode
perder de vista que esse desconhecimento ou esquecimento colabora fortemente na
definição das identidades dos sujeitos pelas ideologias interpelado.
Portanova (2003) ainda nos diz sobre ideologias
que influenciam o fazer jurídico e que podem ser percebidas em sentenças
proferidas baseadas na Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro
(Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942) que no seu artigo 4º diz que
“quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais do direito”. O Código de Processo Civil, no
artigo 126, estabelece que o juiz não se exima de sentenciar ou despachar
alegando lacuna ou obscuridade da lei. Se seu julgamento não se basear em lei
(caso não haja a lei), recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios
gerais de direito.
Visto desse modo, o juiz está sujeito à
interpelação de uma ideologia não necessariamente ligada ao Direito, mas que o
permeia de modo inequívoco.
Três ideologias são certas de que influenciaram
e continuam a influenciar o juiz ao sentenciar: o capitalismo, o machismo e o
racismo. [...] Para ele, a ideologia está difundida nos preconceitos, costumes,
religião, família, escola, tribunais, asilos, ciência, cultura, moral, regras
gerais de conduta, filosofia, bom-senso, tradição. Não há malícia no agir, mas
age-se de forma imperceptível, inconsciente, por meio de mecanismos de
controles sociais de forma a substituir na consciência a realidade concreta por
uma “realidade” representada (PORTANOVA, 2003, p.16)
Ao longo das considerações sobre ideologia,
podemos perceber que não há uma definição única para este fenômeno. Podemos ver
a ideologia como a alegoria de um espectro que permeia o agir dos sujeitos todo
o tempo, interferindo ou determinado suas ações. A ideologia é a lente pela
qual percebemos o mundo à volta, é uma força que permite ao sujeito perceber ou
não fatos ao redor e que se reflete nos discursos do sujeito. A ideologia se
presta à análises semânticas, pois que há palavras ou conjuntos de palavras que
são comumente observadas quando examinadas em contexto ideológico.
Montoro (2011) não utiliza o termo ideologia,
mas doutrina para designar o conjunto de ideias que constituem a área. Para
Foucault as doutrinas constituem “o inverso de uma sociedade de discurso”
(1999, p. 41) no sentido que sociedade de discurso se baseia num número de
indivíduos que falam, embora não seja uma quantidade enumerável, era limitado;
Foucault ressalta que só entre eles o discurso poderia circular e ser
transmitido. Ainda segundo aquele autor, a doutrina tendia a difundir-se pela
partilha de um só e mesmo conjunto de discursos que definia sua pertença
recíproca (ibidem, p. 42). Parece-nos que a condição de reconhecimento mútuo
seria então a aceitação das mesmas verdades dentro de um discurso em
conformidade e validado. Nesse sentido, alinhamo-nos com Foucault quando diz:
A
doutrina questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida em
que a doutrina vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de uma
pertença prévia. [...] a doutrina liga os indivíduos a certos tipos de
enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos os outros; mas ela se serve,
em contrapartida, de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si
e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros.(1999, p. 43)
Ao tratar da doutrina do Direito, Montoro nos
diz que esta se baseia em um positivismo jurídico, que remonta ao direito
anglo-americano onde “o verdadeiro criador do direito não é o legislador, mas o
juiz” (2011, p. 303). Ainda nos diz que o direito emanado do poder legislativo
só adquire sentido e realidade depois de interpretado pelos juízes, ao
aplicá-lo aos casos concretos. Além de significar a aplicação da lei, os
julgamentos geram jurisprudência quando a decisão não era prevista
especificamente em lei.
Dworkim (apud
Habermas, 1997, p. 257) se apoia em casos do direito americano e anglo-saxão
para analisar como os juízes controlam situações jurídicas indeterminadas
baseando-se em finalidades políticas e princípios morais. Tais juízes
conseguiam tomar decisões fundamentadas através de argumentos extraídos da
determinação de objetivos, ou seja, o juiz chega a uma decisão e a partir daí
traça uma linha argumentativa para fundamentar sua decisão. A jurisprudência se
configura segundo a aplicação de normas jurídicas que estabilizam a
expectativa, em outras palavras, o juiz leva em conta a determinação do objetivo
legislativo à luz de princípios que justifiquem uma decisão, seja ela política
ou que garanta determinado direito de um indivíduo ou de um grupo.
Habermas nos diz que o direito positivo não pode
basear-se nas contingências de decisões arbitrárias, geradoras de
jurisprudência, mas:
[...]
a positividade do direito significa que, ao se criar conscientemente uma
estrutura de normas, surge um fragmento de realidade social produzida
artificialmente, a qual só existe até segunda ordem, porque ela pode ser modificada
ou colocada fora de ação em qualquer um dos seus singulares (1997, p. 60)
Desse modo, o direito positivo surge como
demonstração de uma vontade que confere duração a determinadas normas para que
se oponham à possibilidade de virem a ser declaradas sem efeito. Nesse sentido,
a pretensão de legitimidade dá ao direito positivo força sob forma de uma
aliança.
A importância dada à jurisprudência[3] vem do
fato de que “as regras assentadas pelos tribunais de um país constituem a fonte
última de seu direito” (MONTORO, 2011). Como dito anteriormente, o direito só
adquiri sentido quando interpretado pelo juiz, assim pode-se entender melhor o
que Pecheux diz sobre a relação entre sujeito e ideologia: “1) Só há prática
através de e sob uma ideologia; 2) Só
há ideologia pelo sujeito e para sujeitos” (PECHEUX, 1997, p. 149, grifo do
autor). Contudo, a ideologia permeando o fazer jurídico esbarra num exame de
coerência, ou seja, o legislador pode utilizar suas autorizações
normalizadoras, desde que se acoplem ao corpus
das leis vigentes para resguardar a unidade do direito.
A jurisprudência deve possuir uma racionalidade
tal que sua aplicação interna tenha fundamentação no plano externo, que de
acordo com Habermas (1997) vai garantir simultaneamente a segurança jurídica e
a correção. Ainda segundo Habermas (op.cit., p. 251) a segurança jurídica tem
precedência sobre a garantia de correção e se torna clara nos casos difíceis
onde se estabelece a questão da adequação de decisões específicas.
Consequentemente, o juiz preenche o seu espaço de arbítrio através de
preferências não fundamentáveis juridicamente orientando suas decisões por
padrões morais que a autoridade do direito não cobre. Ainda que os conteúdos
morais sejam traduzidos para o código do direito, Habermas afirma que passam
por uma transformação jurídica de seu significado.
As considerações feitas tomam como objeto para
as discussões uma sentença judicial e um acórdão judicial, embora ambos sejam
produzidos dentro da esfera jurídica, suas origens se dão em níveis diferentes.
As sentenças resultam de um julgamento e os acórdãos se produzem quando uma das
partes envolvidas no julgamento não concorda com o resultado da sentença e dela
recorre em uma instância superior. Assim, como resultado do recurso tem-se o
acórdão, onde desembargadores acordam com o provimento ou não de um dado
recurso.
Os julgamentos, embora produzidos tecnicamente
no mesmo lugar, o prédio que abriga o aparelho jurídico, são diferentes em sua
origem e em resultados e efeitos, mas que constituem um conjunto complexo de
dispositivos que abrigam a ideologia do Estado. Nas palavras de Althusser
[...]
conjunto complexo, isto é, com relações de
contradição-desigualdade-subordinação entre seus “elementos”, e não uma simples
lista de elementos: na verdade, seria absurdo pensar que, numa conjuntura dada,
todos os aparelhos ideológicos de Estado contribuem de maneira igual para a
reprodução das relações de produção e para a transformação. (apud Pecheux,
1997, p. 145)
Queremos dizer aqui que mesmo dentro de um
aparelho de Estado, como o aparelho jurídico, existem relações internas de
poder determinantes de desigualdades cujos efeitos percebem-se fora do
aparelho. Esses efeitos são percebidos nos discursos que o aparelho produz, e
ainda nesse sentido, Bourdieu (2004, p. 11) nos diz que a estrutura deste
sistema simbólico que é em si o sistema jurídico, cumpre ainda uma função
política de instrumento de imposição ou de legitimação da dominação de uma
classe sobre a outra. E nesse caso específico, o dominação ocorre também
organicamente, onde uma turma de juízes desembargadores tem o poder de desfazer
uma sentença de instância inferior.
Sendo a área jurídica um lugar de “concorrência
pelo monopólio do direito de dizer o direito” (BOURDIEU 2004, p. 212),
observa-se em alguns momentos, como no texto objeto deste estudo, que se
defrontam atores sociais qualificados ideológica, social e tecnicamente, para
interpretar e fazer cumprir suas decisões, baseadas, em sua maioria, em
decisões anteriores semelhantes como fundamento de uma visão consagrada e
legítima. E, ainda, observa-se que a disciplina é marcadamente presente no
princípio do controle da produção do discurso no sentido de que a disciplina no
controle do discurso assegura a identidade do enunciador sob a forma de uma
reatualização permanente das regras.
No conteúdo do acórdão, objeto desta análise,
tenta-se aplicar as teorizações à luta cognitiva travadas entre os
desembargadores dentro de seus pareceres, através da análise de conteúdo e de
discurso; o contraste entre os ideários é evidenciado com excertos.
Podem-se identificar duas ideologias que
subjazem àquela que rege o direito, também chamada de doutrina do Direito,
doutrina esta abordada brevemente neste estudo. Chamamos de ideologia
subjacente porque acreditamos que dentro do Direito há diversos entendimentos
sobre um mesmo fato, se assim não o fosse não haveria necessidade de um recurso
ser julgado por três desembargadores. As duas ideologias seriam uma que tem
forma mais estatutária, voltada para o que diz a lei ipsis literis. A outra seria um em si mesmo reflexivo, no sentido
de que se apoia na lei para defender um ponto de vista pessoal não
necessariamente partilhado pelos pares, mas apoiado na moral pessoal. E, de
acordo com o conceito de Bourdieu (2004, p. 48), como essas ideologias não
aparecem e não se assumem como tal, é deste desconhecimento que lhe vem a
eficácia simbólica. Não se pode perder de vista que esse desconhecimento ou
esquecimento colabora fortemente na definição das identidades dos sujeitos
pelas ideologias interpelado, como também o diria Pecheux (1997).
Diz-se isso porque no acórdão estudado, um
desembargador defendeu que a decisão do júri deveria ser mantida, porque,
segundo aquele juiz, a decisão do júri é soberana, tornando aparente uma
ideologia baseada em valores democráticos, não se prendendo ao que diz o
ordenamento jurídico vigente e apontando para a lei maior da nação. Utilizando
os recursos da retórica, o Juiz Vogal levanta alguns questionamentos: “Como nós
podemos, na técnica, dizer se a pessoa foi ou não levada ao extremo para matar?
Como posso dizer isso se não sou soberano? Eu exerço a soberania por deferência
dos jurados[4]”.
Então o juiz faz referência à carta magna e diz:
“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
[...]” (Art. 1°, parágrafo da Constituição Federal). Ainda nessa linha, o juiz
fala sobre quem aplica a lei é o povo e volta a questionar que se a
constituição da nação deu ao júri soberania não deveria ser condicionada à
técnica, sugerindo que a técnica seria supralegal, ou seja, está acima da lei.
O juiz ainda continua dizendo que
individualmente o júri tem mais capacidade de decidir sobre o assunto, sugere
que a decisão pode ter sido baseada em uma “autorização psicológica, portanto
aceita pela sociedade, para que a pessoa praticasse o ato”.
O referido juiz vogal assume posição polêmica
quando diz que ao votar pela segunda vez pela técnica supralegal o júri leva os
juízes a serem obrigados a aceitarem a decisão, e ainda sugere que seria “com
medo, talvez do povo”. Ainda dentro desta posição assumida, sugere que os
doutrinadores da lei o fazem para venderem livro, “esquecendo-se da soberania
do júri”.
O juiz vogal deixa claro que o direito é dito ou
praticado em um tribunal e que quem diz o direito no caso é o tribunal do júri.
O referido juiz deixa claro não aceitar a tese da legítima defesa da honra
acatada pelo júri, ao contrário a repudia, mas reafirma que não pode violar a
soberania dos jurados ao aceitarem a tese supralegal.
Em seguida o Juiz Vogal questiona a soberania
dada ao júri e, consequentemente, ao povo.
Como posso agora dizer que ele [o júri] é
soberano em termos? [...] Soberania pela metade? Quem a tem, porque a exerce, e
não realmente porque a tem, essa é a realidade. É o Estado que exerce a
soberania que pertence ao povo. Mas nós, dentro de uma cultura absolutamente
autoritária e tecnicista, entendemos que a soberania é do Estado, e ele que a
exerce.
Igualmente, Althusser diz que “o Estado é uma
máquina de repressão que permite às classes dominantes [...] assegurar a sua
dominação sobre a classe operária [...]” (1974, p. 31). É o que o Juiz Vogal
estava dizendo naquele momento, o Aparelho Ideológico do Estado através da
estrutura jurídica aceitaria a decisão do júri se esta fosse de acordo com a
ideologia do Aparelho, como não foi assim, o Aparelho desfez a decisão dos
jurados e se impôs sob o argumento de violação à técnica, em outras palavras, a
ação da instância superior jurídica concorreu para a reprodução das relações de
produção a fim de manter a unidade ideológica.
As decisões então são democráticas em termos,
soberanas pela metade, nas palavras do juiz, só são aceitas quando concorrem
para um resultado único, sujeitando os indivíduos a uma ideologia democrática
indireta.
O Juiz Vogal arrazoa sua tese declarando:
Eu
não posso aceitar, e não aceito que alguém mate em defesa da honra, mas não
posso dizer que os senhores jurados julgaram de maneira manifestamente
contrária à prova dos autos. Não posso porque se está mudando a opinião a
doutrina e a técnica é a elite superior deste país, e não a grande maioria
deste país. Será que nós, pela técnica, estamos efetivamente entendendo a
conduta humana dentro de sua comunidade, naquela sociedade, daquela formação?
Entendo que não. [...] não entendo que o júri não possa fazer decisão
supralegal. Se o juiz togado pode, porque o júri não pode? [...] se o juiz pode
aplicar a lei [...] por que o júri, que é dono da soberania, não pode?
E por fim em seu voto, o Juiz Vogal discorre
brevemente de um caso em que os réus foram julgados duas vezes, sendo absolvidos
em ambas e que o Tribunal anulou o júri e condenou os réus, depois se descobriu
que os réus eram realmente inocentes[5].
O ordenamento jurídico diz que quando uma
decisão do júri for “manifestamente contra as provas dos autos[6]” deverá
ocorrer novo julgamento, se persistir a decisão anterior, sepultado estará o
caso. Assim defenderam os demais juízes desembargadores que houvesse um novo
julgamento.
Dentre os juízes que se alinharam como votos
vencedores, um juiz desembargador apontou uma terceira via, mesmo votando a
favor de um novo julgamento, indica um novo caminho que poderia ser seguido
pela defesa do réu e, assim, possivelmente, obter-se nova sentença favorável
igual à primeira. Ele diz:
A
apelação deste recurso, nós julgamos [...] e continuo achando que se trata de
crime praticado sob violenta emoção, logo em seguida à provocação da vítima. talvez,
se a tese da defesa viesse com a da violenta emoção, tivesse guarida em sua
pretensão.
Em
breve descrição, a violenta emoção é prevista no Código Penal:
São circunstâncias que
sempre atenuam a pena: (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984)
III - ter o
agente:(Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984)
c)
cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de
autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato
injusto da vítima.
Este dispositivo legal é utilizado
especificamente em crimes de homicídio e lesões corporais e dá ao juiz
autorização de redução da pena. Ainda sobre a violenta emoção, como um estado
da alma, é discutido na área da psicologia forense.
Vê-se que a ideologia hegemônica não é absoluta,
outras ideias a permeiam e vez ou outra transparecem de algum modo.
Chama-se a atenção sobre o discurso democrático,
que mesmo em Atenas “construiu-se em evidente descompasso com relação à prática
política ateniense” descompasso esse atribuído àqueles que constituem uma
ideologia (LORAUX, 1994, p. 21). Ainda de acordo com Loraux, Heródoto afirma
que é no número que há o todo e Ésquilo em Suplicantes diz que “lei do
escrutínio popular, onde prevalece a maioria” (ibidem, p. 21).
Alinhando-nos a Althusser (1974, p. 54),
observamos que o Aparelho Ideológico de Estado desempenha incontestavelmente o
papel dominante; entretanto, o que se pode observar é que em dados momentos os
juízes veem-se em situações dialéticas, entre defender um posicionamento
pessoal ou defender uma posição no âmbito social.
A ideologia democrática como uma crença pessoal
(defender a soberania dos jurados) pode se chocar com a doutrina jurídica em
determinados momentos (defender o ordenamento jurídico). Nesse sentido, o
pensamento dialético como modus pensandi
dá suporte a todo um processo decisório, que especificamente levou o Juiz Vogal
a embasar seu voto.
Refazendo o percurso trilhado, usando do
artifício retórico, o juiz primeiro chama à razão seus interlocutores quando
diz “o que é crime?”, mostra verdade do fato e sugere que o júri errou na sua
decisão sob o ponto de vista da técnica, mas que mesmo errado aquela foi sua
decisão e como tal deveria ser mantida. Nota-se assim um discurso fundamentado
na “vontade de verdade” foucaultiana.
[...]
o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que
esponde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na
vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e
o poder?(FOUCAULT, 1999, P. 20)
Nesse sentido, para se caracterizar um crime a
proposição deve poder inscrever-se em certo horizonte teórico, é o que se
materializa no discurso quando o enunciador define crime e em seguida opõe a
técnica à razão do fato.
Colocou-se assim que no ponto de vista técnico
houve um erro, Foucault nos diz que o erro só pode surgir e ser decidido no
interior de uma prática definida, em seguida propõe:
[...]
uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder
pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada
verdadeira ou falsa, deve encontrar-se [...] no verdadeiro. (1999, p. 35)
Assim, a tese discutida sobre a razão do crime,
insere-se no campo do verdadeiro, logo não deve ser estranha à concepção da
técnica. Foucault também nos diz que é sempre possível dizer o verdadeiro no
espaço de uma “exterioridade selvagem”, entretanto, não se estará no verdadeiro
senão obedecendo às regras de uma vigilância discursiva ativa em cada discurso.
Assim, quer-se dizer que para o Juiz Vogal estar e se manter no verdadeiro
foucaultiano, primeiro evocou as regras discursivas de seu meio, obedeceu às
regras da discursividade vigiada e continuamente reativada em cada tomada de
turno e só então expõe sua opinião, só então expressou sua subjetividade.
Considerações finais
Tendo
em vista os pressupostos da Análise do Discurso, da ideologia no contexto
histórico e da interpretação dos fenômenos ideológicos e como estes se inserem
no discurso jurídico, podemos concluir com algumas proposições as quais
acreditamos emergirem ao final deste estudo.
A primeira é que o espaço de circulação das
sentenças judiciais é historicamente o prédio em que funcionam os Aparelhos
Jurídicos de Estado. Todavia, há uma tendência de mudança deste status de circulação proporcionado pela
tecnologia, pois que textos jurídicos de diversas ordens (sentenças, apelações,
embargos, etc.) estão disponíveis para consulta pública bastando apenas ao
consultor acessar a rede mundial de computadores. Ainda dentro desta
proposição, acreditamos que restringir a leitura de um texto a uma formação
discursiva específica limita sua interpretação, podendo impedir o leitor de
perceber deslizamentos de sentido que podem remeter o enunciado ao outras
formações discursivas, ou seja, considerar uma formação discursiva pode impedir
o processo de significação interdiscursivo.
A segunda proposição não é exatamente uma
proposição, mas a constatação de que vemos a sentença jurídica como uma
manifestação institucional e que representa os valores da instituição jurídica;
a circulação deste modelo de discurso influencia a sociedade sinalizando a
permissão ou a proibição de ações ou comportamentos. Vemos o discurso jurídico
como um instrumento que reflete o momento histórico da sociedade e cumpre uma
função ideológica quando reproduz os valores morais do grupo do qual origina,
por meio de um sujeito que ao proferir a sentença se torna agente disseminador
do pensamento da instituição jurídica.
Nesta terceira proposição rejeitamos a ideia de
que a ausência de debates ou discussões abertas sobre correntes ideológicas
possam ser indicativos de que as ideologias vigentes podem estar desaparecendo
ou em declínio. As análises que efetuamos na sentença deixam claro que a
ideologia que prevê a divisão de classes e o modelo weberiano de dominação
burocrática estão bem vivos e presentes na sociedade. Falamos isso em função de
que o texto analisado foi produzido por uma sessão do tribunal de justiça de
segunda instância e desfez a decisão da primeira instância.
Ao adentramos nesse espaço jurídico donde se
produziram essas considerações, quer-se deixar claro que longe de conclusão,
abriu-se aqui uma discussão sobre análise de discurso de linha francesa
aplicada ao exame de conteúdo de um texto jurídico rico em significação e que
apresenta marcas de subjetividade às vezes claramente, em outros momentos não.
A ideologia como um todo amorfo como o ar,
definível, experimentável, está em quase todos os lugares (não está no vácuo,
mas o homem não sobrevive no vácuo) influenciando de algum modo os discursos
produzidos. Mesmo ao produzir uma explicação do que é ideologia, esta se faz sob
uma pesada influência ideológica. Não há discurso neutro. A Análise do Discurso
é um dispositivo que proporciona analisar textos os mais variados, inclusive os
jurídicos, de modo a perceber as ideologias que os engendram.
Afirma-se que é preciso analisar-se os discursos
porque os valores e as instituições que embasam o pensamento que permeia as
sociedades modificam-se a cada dia e, numa visão nietzscheana, decaem dentro de
um processo lento porém inexorável, que traz como consequência o questionamento
sobre o que ainda é verdadeiro,
confiável e não niilista.
Referências
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L. Ideologia e aparelhos
ideológicos do estado. Trad. J. J. Moura Ramos. Lisboa: Presença/ Martins
Fontes, 1974.
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ampl. – São Paulo: Brasiliense, 2001.
FOUCAULT, M.
A ordem do discurso. Trad. Laura
Sampaio. 5. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
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I. London: Verso. 1980. Tradução: Jair Pinheiro. Disponível em www.pucsp.br/neils/downloads/v1_artigo_therborn.pdf acessado em 27.ago.2012.
[1] Professor Doutor no curso de graduação em letras – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS-Jardim. E-mail alexandre_gonzaga@hotmail.com
[2]
Na edição de 1985 (Rio de Janeiro:
Graal); a versão de 1974 traz o vocábulo “penetrados”.
[3] O artigo 479 do Código Civil nos diz que: o julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.
[4] Ementa: Processo; julgamento: 17.set.2001; Órgão Julgador: Seção Criminal; Classe: Embargos infringentes. Relator: Exmo. Sr. Des. João Carlos Brandes Garcia.
[5]
Sobre os irmãos Naves pode
ser consultada a obra ” O caso dos irmãos naves: chifre em cabeça de cavalo /
por Jean-Claude Bernadet e Luis Sérgio Person. – São Paulo : Imprensa Oficial
do Estado de
São Paulo : Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2004”. Disponível em http://aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.812.943/12.0.812.943.pdf acessado em 13.ago.2013.
[6] Argumento usado pela promotoria, quando a sentença absolutória é proferida, para interposição de recurso contra a decisão.
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